domingo, 26 de junho de 2011

UMA REFLEXÃO SOBRE A ÁFRICA


Tive a oportunidade, esta semana, de ouvir a palestra de Frank Chikane, pastor batista, que foi o chefe da Casa Civil do governo de Nelson Mandela na África do Sul. A essência de sua palestra foi a de afirmar que as políticas públicas são indispensáveis para superar o último resquício do racismo que, se deixado como está, reproduz a injustiça econômica e social indefinidamente. Fiquei admirarda com a clareza e a simplicidade com que ele desenvolveu este ponto de vista. E lembrei como, aqui no Brasil, ainda se contestam políticas como a das cotas na Universidade. Porém, o que mais me marcou foi sua descrição de Mandela, como o líder capaz de liderar o povo negro para vencer a luta contra o racismo institucionalizado em seu país, sem levá-lo a um banho de sangue e ódio.

O reconhecimento de Mandela como um líder extraordinário, capaz de uma autêntica façanha política, como a de unir um país dividido por décadas de opressão e ódio, me faz pensar em como temos uma visão preconceituosa da África. Com tantas guerras horrendas, em todo o mundo, fundamentadas nas diferenças étnicas e culturais, deveríamos perceber o quanto a África do Sul ensinou ao mundo.

A partir destas reflexões, lembrei de publicar o texto a seguir, de Kabengele Munanga e Nilma Lino Gomes – “Para Entender o Negro no Brasil de Hoje – História, Realidades, Problemas e Caminhos – Ed. Global, São Paulo, 2006. É de grande importância, para todos que lutam pela igualdade.

" Quais as imagens que temos em mente quando nos referimos ao continente africano? Como são os povos que lá vivem ou viveram? Como se organizam e quais as condições de vida das diversas sociedades africanas? Quais tecnologias desenvolveram? Quais as tradições que são mantidas e as que resistem?

Muito do que conhecemos da África chega até nós pelos meios de comunicação de massa. Filmes como os de Tarzan e outros popularizados no cinema e na TV trazem para nós imagens distorcidas do povo africano, de suas tradições e sabedoria. De modo geral, os personagens brancos são os que levam saberes, a religião e a cultura que deve prevalecer. Também ensinam os modos de organizar as sociedades, as formas de cultivar a terra, de preservar o meio ambiente e a saúde às pessoas negras que nada ou pouco sabem. Reportagens e documentários nos mostram pequenas parcelas da incrível diversidade cultural deste imenso continente ou apenas os aspectos curiosos destas culturas. Muitas das imagens e textos que chegam até nós reduzem todo legado histórico e de sabedoria produzido há milhares de anos por variados povos que lá habitam ou habitaram.

Até hoje, nas imagens que são veiculadas sobre a África, raramente são mostrados os vestígios de um palácio real, de um império, as imagens dos reis e muito menos as de uma cidade moderna africana construída pelo próprio ex-colonizador. Geralmente, mostram uma África dividida e reduzida, enfocando sempre os aspectos negativos, como atraso, guerras “tribais”, selva, fome, calamidades naturais, doenças endêmicas, Aids, etc.

No entanto, não faltam imagens e registros históricos capazes de mostrar uma África autêntica em sua múltipla realidade, que possam até criar um sentimento de solidariedade com os países africanos. Essas imagens de uma África autêntica pululam nos testemunhos dos viajantes árabes que se aventuraram na África ocidental entre os séculos IX e XI e dos navegadores portugueses que, no alvorecer da era das navegações do século XV, começaram a se aventurar mais ao sul do continente de forma sistemática.

Todos, árabes e europeus, descreveram em seus relatos a verdadeira África que viram. Muitos falaram com admiração das formas políticas africanas, altamente elaboradas e socialmente aperfeiçoadas, entre as queis se alternavam reinos, impérios, cidades-estados e outras formas políticas baseadas no parentesco, como chefias, clãs, linhagens, etc.

Até a véspera da era colonial moderna, era comum encontrar imagens positivas sobre a África. A natureza e as paisagens eram descritas com simpatia e lirismo; as mulheres eram consideradas bonitas e respondendo aos cânones da beleza da época, com boca em cereja e curva excitante. Escreveu o viajante alemão Barth, a respeito de uma cidade que ele viu na África ocidental:

“Taiwa foi a primeira grande cidade que eu vi num país propriamente negro. Ela me deixou com uma boa impressão, pois em toda parte apareciam signos evidentes da vida confortável e agradável em que viviam os nativos: a corte era cercada de grandes caniços que a protegiam dos olhares dos passantes...; perto da entrada, havia uma grande árvore sombreada e refrescante embaixo da qual recebiam-se os visitantes e tratava-se dos negócios correntes; toda a residência era protegida pelha folhagem das árvores e animada por tropas de crianças, cabritos, galinhas, pombos, um cavalo(...). O caráter dos próprios habitantes estava em completa harmonia com suas residências, tendo como traço essencial uma felicidade natural, uma preocupação para gozar da vida, amar as mulheres, a dança e os cantos, mas sem excesso... Beber álcool não passava por pecado num país onde o paganismo permanece a religião da maioria. Mesmo assim, era raro encontrar pessoas bêbadas: os não muçulmanos contentavam-se em beber um pouco de giya, espécie de cerveja de sorgo, para manter o coração feliz e gozar da vida” (Roland Oliver & Anthony Atmore, L’Afrique depuis 1800, Paris, Presses Universitaires de France, 1970, p. 36-37).

Uma outra testemulha ocular, o viajante e pesquisador alemão, Leo Frobenius, fala de outras cidades que viu em 1906, na África central:

“Quando entrei na região do Kassai e do Sankuru, encontrei ainda aldeias cujas ruas principais tinham quilômetros bordados com fileiras de palmeiras e cujas residências eram decoradas de maneira fascinante como se fossem obras de arte. Não vi homens que não carregavam no cinto suntuosas armas de ferro e cobre... Havia por toda parte tecidos de veludo e seda. Cada taça, cachimbo, cada colher eram uma obra de arte, totalmente dignos de comparação com as criações européias” (Roland Oliver & Anthony Atmore, L’Afrique depuis 1800, Paris, Presses Universitaires de France, 1970, p. 19).

Após a conferência de Berlim (1885) que definiu a partilha colonial da África entre os países europeus interessados em explorar política e economicamente esse continente, as imagens simpáticas e tranquilizadoras começaram a sombrear. A infância inocente foi substituída pela imagem de subumanos para justificar a invasão, a manutenção dos processos de colonização e a exploração econômica no continente e para facilitar a operação de sujeição."

segunda-feira, 13 de junho de 2011

AMIGA GUERREIRA ENSINA A ENSINAR


Fiquei emocionada ao visitar a PROFESSORA Marilurdes de Abreu, na semana que passou (dia 08/05), para conhecer seu trabalho. Marilurdes, amiga guerreira, é professora infantil da turma de nível 5, na EMEF Jorge Ewaldo Koch (bairro Rondônia, Novo Hamburgo, RS). Fui ver o resultado de suas aulas sobre a história e a cultura indígena. Muitas vezes, achamos difícil tratar temas desta profundidade com crianças tão pequeninas. O quê poderiam aprender sobre os indígenas, crianças que sequer estão alfabetizadas? Marilurdes mostra que podem aprender sobre este tema, sim. E muito.

Com o amor de uma autêntica intelectual orgânica, ela soma todo o conhecimento acadêmico adquirido no curso superior de Pedagogia com o aprendizado prático que seus alunos lhe proporcionam. Usa a força fabulosa da fantasia infantil para abrir caminhos que a inteligência viva das crianças percorre com alegria.

E o que ela fez, neste caso específico? Tudo aparentemente muito simples, mas profundo e feito com o esforço e a dedicação de quem tem carinho por suas crianças.

Primeiro, levou a turminha para conhecer o Museu do Índio, na Fundação Evangélica, onde viram arcos, flechas, diversos utensílios, todos de índios amazônicos. Em casa, pesquisou sobre os índios que viveram no Rio Grande do Sul e em Novo Hamburgo, kaingangs e guaranis, verificando o que tinham e comum e o que tinham de diferente em relação à tribos do norte brasileiro. Para a aula, levou uma coleção daquelas de estatuetas de animais confeccionadas em madeira, arte dos guaranis – kits adquiridos pela Secretaria Municipal de Educação e Desporto, como parte de uma formação junto à Faculdade EST – Ensino Superior de Teologia -, de São Leopoldo, que desenvolve estudos específicos sobre a questão indígena .

Aí, foi brincar com os alunos, brincar de índios. Lembrou dos arcos e flechas, das canoas, das conchas... e propôs desenhar e confeccionar coisas relacionadas com este tema. Aproveitou para conversar... observar, por exemplo, que os índios não gostam de derrubar árvores, nem mesmo de retirar galhos para seus trabalhos. Preferem utilizar madeira já caída na floresta. Desta forma, contam com material mais maleável para trabalhar. E também evitam agredir a natureza.

Porquê é importante respeitar a natureza? Muito simples: os índios precisam dela porque é quem lhes dá os peixes com que se alimentam. Vamos brincar de pescar? Vamos desenhar índios nas suas canoas?... com os rios cheinhos de peixes. E, aí, observa que os rios precisam ter águas limpas para que os peixes possam crescer saudáveis.

A natureza também lhes dá as contas com que produzem colares para se enfeitar. Vamos fazer colares? Olha como usam sementes coloridas. Algumas são pintadas. As tintas que os índios usam são tintas que não poluem a água, que a natureza consegue reaproveitar com facilidade. As estatuetas de madeiras, por exemplo, são pintadas com uma tinta produzida com a mistura de areaia e urina.

E por estes caminhos, Marilurdes vai ajudando suas crianças a usarem fantasia e imaginação para se apropriarem de realidades e valores importantes, como a diversidade, a preservação do meio ambiente e o respeito, tanto à natureza como às diferentes culturas e etnias.

Para finalizar, junto com as crianças organizou uma rica exposição de seus trabalhos e preparou os pequenos para – eles mesmos – conversarem com colegas de outras turmas para compartilhar com eles seus novos conhecimentos.

E eu, como disse lá no início deste artigo, me emociono. Me alegra, especialmente, o fato de que muitas outras professoras – e professores – vem realizando trabalhos semelhantes. Como Marilurdes, que, relacionando o indígena e o meio ambiente, mostra como se pode, com toda naturalidade, incluir no currículo a questão da diversidade. E compartilho tudo isto com vocês.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

A LUTA DO POVO NEGRO: outra história e outro futuro



Talvez, nos bons sonhos de quem dorme nas favelas,
muito mais do que blocos de concreto, exista uma polícia
que não chegue dando tiro em tudo que é preto e se move,
sem pensar se é sobrinho, filho, neto ou enteado
de quem quer que seja.

Em 1943, durante a II Guerra Mundial, o comando militar norte-americano proibiu transfusões de sangue de negros para soldados brancos. Esta técnica, que já salvou milhões de vidas, era, então, uma recente inovação científica, fruto das pesquisas de um brilhante médico, Charles Drew, que também respondia pela presidência da Cruz Vermelha norte-americana. Este mesmo Drew insurgiu-se contra a determinação do Pentágono, que considerou um disparate. No entanto, prevaleceu a decisão dos generais e o cientista foi destituído de seu cargo à frente da Cruz Vermelha. Um pequeno detalhe exacerba o ridículo deste capítulo da História: Charles Drew, o brilhante cientista que desenvolveu a técnica de transfusão de sangue, era afro-descendente.
Eis, infelizmente, uma metáfora perfeita do racismo. A elite da sociedade racista sempre foi pragmática e racional no momento de aproveitar o conhecimento dos negros. Ao mesmo tempo, com estupidez que beira a bestialidade, também sempre insistiu no mito da inferioridade negra. Os generais do Pentágono não viram nenhum problema em utilizar-se da maravilhosa descoberta do plasma, que viabilizou a transfusão de sangue, mesmo vinda do cérebro de um negro. Mas não conseguiram digerir a idéia de que soldados brancos pudessem receber sangue de afro-descendentes. Sentiam ânsia de vômito ao pensar nesta hipótese, pois para eles, o negro continuava sendo algo repelente.
Por mais gritante que esta esquizofrenia intelectual possa nos parecer, ela tem sua lógica. Não só nos Estados Unidos, mas em todas as terras onde se desenvolveram economias fundadas na mão-de-obra escrava negra, se criou e difundiu um sistema de idéias para sustentar que estas pessoas eram destituídaos de humanidade, sensibilidade, inteligência ou qualquer outro tipo de virtude. Sua única contribuição à sociedade, portanto, só poderia ser o trabalho mais rudimentar, para o qual era apenas necessária a força física. Ao mesmo tempo, os escravos eram selecionados e adquiridos de acordo seus talentos. Para trabalhar com o ouro, nas Minas Gerais brasileiras, por exemplo, os colonizadores portugueses precisaram buscar escravos das regiões africanas onde se praticavam a mineração e a metalurgia, pois os portugueses estabelecidos no Brasil pouco conheciam destas artes. Na Bahia, a História ficou marcada pela ação dos escravos muçulmanos que, sabendo ler e calcular, eram utilizados na administração dos negócios dos senhores, muitas vezes iletrados.
Mesmo nas lides mais rudes, se observa outra faceta desta mesma contradição. Os negros trabalhavam à exaustão, enquanto as elites brancas orgulhavam-se das mãos de toque suave e das unhas compridas, sinais evidentes de que não precisavam trabalhar. No entanto, era sobre os negros que recaía – e ainda recai – a pecha de preguiçosos e indolentes.
IDEOLOGIAS NÃO SE FUNDAMENTAM
EM FATOS, MAS EM INTERESSES
A lógica desta imensa farsa está nas necessidades da expoliação – do trabalho dos negros e da terra dos indígenas. O mito da inferioridade racial foi construído para adormecer as consciências, mas não apenas da sociedade branca. Estava apontado também contra as consciências negras (e indígenas).
Costumamos pensar nas ideologias como estruturas, ou até como sistemas, mas a compreensão mais adequada é a de um processo. Como as sociedades, as ideologias existem em transformação e adaptação permanentes. São carregadas de contradições e elementos, não só racionais e objetivos, mas também inconscientes. Elas não se fundamentam em fatos, mas em interesses – e os interesses se transformam ao longo do tempo. Assim, quando os senhores adquiriam escravos em função dos seus conhecimentos e habilidades, não atendiam a uma racionalidade neutra, mas à racionalidade dos seus interesses. Esta mesma racionalidade lhes ditava a necessidade de inferiorizar os negros. Sob este prisma, não há contradição no fato de que a mesma sociedade procurava escravos letrados para ajudarem na administração de seus negócios e proibia explicitamente a alfabetização dos negros.
A verdadeira contradição da sociedade escravocrata não residia na esquizofrenia da sua racionalidade, mas na necessidade de destruir constantemente os trabalhadores que a sustentavam. Durante o dia, precisava de homens fortes, saudáveis e lúcidos, para enfrentar duras jornadas de trabalho. À noite, precisava embriagá-los para destruir sua capacidade de resistência. A informação nos vem de fonte insuspeita, Gilberto Freyre, talvez o maior ícone do racismo cordial brasileiro. Até as crianças negras da eram obrigadas a beber cachaça nas senzalas, todas as noites. Segundo Freyre, porém, “para prevenir a verminose”.
Neste ponto, é preciso esclarecer que este relato não é uma queixa contra o passado de sofrimentos a que foi submetido o povo negro. Seu objetivo é reestabelecer a verdade histórica para enfrentar e superar, hoje, o racismo herdado dos séculos passados. Hoje, o pensamento racista cordial sobrevive e detecta, por exemplo, a realidade do alcoolismo entre os negros como uma evidência a confirmar seus preconceitos. Mas solenemente ignora o peso da herança da cachaça servida à força nas senzalas sobre gerações de famílias negras. A forte rejeição à estratégia de cotas, por sua vez, frequentemente se apresenta como embasada num “democrático” conceito de “igualdade”: as cotas para negros no ensino universitário e no serviço público, segundo esta “democrática igualdade”, seriam a imposição de um “racismo às avessas” que “privilegiaria” os negros, em detrimento dos brancos.
Como se Histórias diferentes no passado não resultassem em realidades diferentes hoje! Esta conversa tão bonita, de que “somos todos iguais”, revela uma ignorância que poderia causar espanto, se não conhecêssemos as contradições históricas que reproduz. Ora, os abusos da era escravocrata não deixaram de causar efeitos com a assinatura da Lei Áurea da princesa Isabel, nem sobre as condições materiais de vida – de negros e brancos – nem sobre os ideários – de negros e brancos. Não é por acaso que ainda hoje policiais abordam jovens negros trabalhadores e estudantes, à noite, simplesmente em função da cor da pele, deixando em paz jovens arruaceiros brancos.
ATÉ O AMBIENTE ESCOLAR É CONSTRUÍDO
A PARTIR DE CONCEITOS DA SOCIEDADE BRANCA
Tampouco seria mero acaso se algum leitor, defensor da “democrática igualdade” acusasse este texto de “racismo ás avessas” por supostamente apresentar os jovens negros como “trabalhadores e estudantes” e os jovens brancos como “arruaceiros”. Releia, se quiser, para certificar-se de que não foi feita nenhuma generalização. Não se disse que nunca a polícia aborda jovens arruaceiros brancos. Tampouco que todos os jovens brancos são arruaceiros. Nem se disse que todos os jovens negros são trabalhadores e estudantes. Tampouco que não existam jovens negros arruaceiros. O que foi dito é que jovens negros, mesmo se trabalhadores e estudantes, são frequentemente abordados pela polícia como suspeitos, simplesmente em função da cor da pele. E não é verdade? No entanto, há quem acredite que existe “igualdade” de condições para negros e brancos que queiram chegar ao ensino universitário.
Não há esta igualdade. Não por força de alguma conspiração urdida contra os negros, mas pela simples reprodução natural do racismo e da desigualdade, como processos históricos. O próprio ambiente escolar é construído a partir de conceitos da sociedade branca. Tome qualquer livro escolar e observe as ilustrações, especialmente as que retratam grupos de pessoas. A boa vontade oficial e os conceitos “politicamente corretos” já fazem com que todos eles apresentem sempre um negro entre um grupo de pessoas brancas. Quase sempre aparecem também uma pessoa de feições asiáticas e outra indígena. No entanto, em que medida estas ilustrações reproduzem a real proporção racial existente no país? Se isto acontecesse, não haveria quem se escandalizasse e acusasse os editores de “racismo às avessas”?
Pois agora já ouvimos quem se sinta desconfortável pela existência de uma lei determinando que a História da África, dos afrodescendentes e dos indígenas seja incluída nos currículos escolares! Não há uma linha sequer, nesta lei, que proíba falar da História dos portugueses, espanhós, alemães, italianos, etc., mas preocupa a “supervalorização” dos negros e indígenas! Porque “supervalorização”? Não são eles metade da população brasileira? Não apontam as projeções estatísticas que, nas próximas décadas, serão a maioria? Não seria justo, portanto, que pelo menos metade dos nossos currículos escolares estivessem voltados para a realidade deste segmento da população?
A questão essencial, aqui, é a dos ambientes retratados e da cultura que se idealiza como a “melhor” a ser ensinada aos alunos. A título de exemplo, vamos observar que a família negra tem características especiais, como o forte traço matriarcal e a amplitude, não tão comuns nas famílias brancas. Esta família, embora seja a de metade dos brasileiros, não é reconhecida no ambiente escolar. Não há nenhuma maldade oculta por trás desta realidade. Simplesmente, a grande maioria dos pedagogos não a conhece e, portanto, não poderia considerá-la na elaboração dos currículos e planos pedagógicos. Observe-se: a grande maioria dos pedagogos é branca, como resultado da constante reprodução das desiguladades e do racismo.
No entanto, já se vão 50 anos desde que Paulo Freire demonstrou que a correspondência entre o ambiente escolar, por um lado e, por outro, o ambiente cultural em que os alunos crescem e vivem, além dos muros da escola, é decisiva para o aprendizado. E, mesmo assim, há quem queira afirmar que existe “igualdade” de condições para negros e brancos que queiram chegar ao ensino universitário.
O RACISMO CORDIAL SE APRESENTA SIMPÁTICO AOS NEGROS,
MAS LHES NEGA A VERDADE DO PROTAGONISMO HISTÓRICO.
Não há dúvida de que evoluímos muito desde o tempo da escravidão. Mesmo assim, ainda há um longo caminho a ser percorrido para que seja completamente superada esta deformação da sociedade brasileira (e de tantas outras). Mas, aqui, cabe perguntar: os mais importantes progressos resultaram de concessões bondosas da sociedade branca ou da luta do povo negro?
Para responder, vamos lembrar do episódio conhecido como “Revolta da Chibata”, ao final da primeira década do século XX. Passados mais de 20 anos da abolição da escravatura, a marinha brasileira ainda amarrava soldados negros aos mastros de seus navios para chicoteá-los, como punição por qualquer ato de desobediência. A estupidez foi banida dos nossos navios só depois que os negros se rebelaram, tomaram uma esquadra e apontaram seus canhões contra o palácio do Catete, no Rio de Janeiro, então sede do governo da República. Os participantes da revolta e seu líder, João Cândido, celebrado como “o Almirante Negro”, foram cruelmente punidos. Porém, o medo de novas sublevações dos negros e do repúdio da opinião pública, fez com que os almirantes brancos abolissem a chibata da marinha brasileira.
Diante dos fatos, cabe renovar a pergunta: foi o sentimento de “democrática igualdade” ou o “racismo às avessas” dos negros revoltados que acabou com o chicote nos navios brasileiros? Qualquer uma das duas respostas, se isolada, é simplória. A luta dos negros foi o fator decisivo. E foi reforçada pela indignação de setores da sociedade dominante. No entanto, o racismo impregnado na historiografia oficial inverte a realidade e nos apresenta bondosos intelectuais brancos como os maiores heróis da libertação e promoção social negra.
Esta é uma das facetas do racismo cordial. Ele se apresenta simpático aos negros, mas lhes nega a verdade do protagonismo histórico. Atribui a libertação dos escravos não à luta dos negros, mas, aos versos do poeta abolicionista Castro Alves e à bondade da Princesa Isabel. Assim, silencioso, eficaz – até porque se justifica com o “cordial” argumento de que relembrar lutas poderia acender a chama do ódio – realimenta a falácia da superioridade racial. Em contraponto, expor a verdade da luta negra não precisa ser um exercício de “racismo às avessas”. Para enfatizar a importância decisiva da luta dos negros contra a escravidão, não é preciso negar a generosidade de setores da sociedade branca. No entanto, continua sendo necessário compreender os limites, mesmo das mais generosas disposições.
TAXADOS DE INDOLENTES POR MAIS DE TRÊS SÉCULOS, OS NEGROS
FORAM VENDER SUA FORÇA DE TRABALHO NO “LIVRE” MERCADO
A bondade da princesa Isabel, por exemplo, foi bem maior do que se costuma imaginar. Seu projeto, mais do que a mera abolição da escravatura, previa a concessão de terras aos libertos. Mero devaneio pessoal, porém. Tudo o que a estrutura de poder dominante lhe permitiu foi assinar uma lei que libertou os negros da escravidão para jogá-los à sociedade de “livre” mercado, “livres” da propriedade de terras e até de ferramentas. Tendo apenas a força dos braços – e cérebros – como mercadoria, para vender “livremente”. Não vamos esquecer, agora, que durante os mais de três séculos anteriores se afirmou e reafirmou que os negros eram indolentes, destituídos de inteligência e até de alma! E que, como se esta brutal desvantagem não fosse suficiente, fez parte da “liberdade” que lhes foi “concedida” competir com trabalhadores europeus, importados porque seriam mão-de-obra, frise-se, de melhor qualidade, por ser de cor branca! Ou isto não é verdade?
Era assim, com esta clareza e objetividade, que se falava no momento histórico em que os negros foram “libertos” para venderem “livremente” sua mão-de-obra no “livre” mercado. Apenas para se ter uma idéia de como era absolutamente dominante o delírio da superioridade racial, foi derrotada no Congresso Nacional uma lei que autorizava a vinda de trabalhadores chineses para substituírem os negros. A razão da derrota é que nossos sábios congressistas acreditavam que os chineses eram indolentes.
A consideração de todos estes fatos deve nos levar a três reflexões, pelo menos.
1) A primeira é a de que houve forte avanço da luta pela igualdade e contra o racismo num espaço de tempo bastante curto. São apenas 120 anos desde que se aboliu a venda de seres humanos no país; apenas 100 desde que se aboliu a chibata sobro o lombo negro nas marinha brasilera.
2) Por isto mesmo, há ainda uma pesada desvantagem, para negros e indígenas, na disputa por espaços no “livre” mercado.
3) Cabe aos negros – e indígenas – o protagonismo de continuar a luta para que o racismo seja total e definitivamente extinto no país.
PARA SUPERAR O EUROCENTRISMO, É NECESSÁRIO UM PENSAMENTO
HISTÓRICO QUE RECONHEÇA E INCLUA TODAS AS RAÇAS E CULTURAS
Convém repetir que, ao entendermos que cabe aos negros – e indígenas – protagonizar a continuidade da luta contra o racismo, não estamos praticando um “racismo às avessas”. Simplesmente, constatamos que, na História, quem mais e melhor luta contra a opressão é o oprimido. Isto, no entanto, não deve esconder que a conquista e o acolhimento de pessoas brancas são essenciais para a construção de uma sociedade realmente democrática, inclusiva e definitivamente não racista.
E este é um dos grandes desafios postos à frente dos militantes negros da igualdade: afirmar a História e a cultura negra, com toda sua ampla gama de valores e o seu “universo de belezas”, sem perder de vista a contribuição de outras etnias. E, aí deve ser incluída a História e a cultura dos povos indígenas, que a visão eurocêntrica oculta também dos olhos afro-descendentes. Faz parte compreender a interpenetração das raças e culturas. A História do povo negro não se conta sem o encontro e a fusão com outros povos, especialmente no Brasil. E, mais uma vez, enfatizamos que não estamos falando somente sobre a fusão com o povo europeu, mas também, e muito fortemente, com os povos indígenas.
Uma segunda faceta deste desafio é a atitude intelectualmente honesta diante da sociedade e da História. Não vale elevar os povos negros e indígenas à santidade, ignorando sua realidade humana. Os negros, como os brancos, como os asiáticos, como os indígenas, como todos os povos, afinal... também produziram ditadores sanguinários. Assim como podemos traçar paralelos entre Mandela e Gandhi, podemos colocar lado a lado Hitler e Idi Amin Dada. A História negra não pode ignorar os caçadores negros de escravos negros em território africano, nem os capitães do mato negros caçando escravos fugidos negros, já no Brasil. Da mesma forma, para compreender a igualdade humana entre todos os povos, ao redimensionarmos o poder dos versos de Castro Alves, não podemos ignorá-lo. O mesmo vale para a bondade, mesmo que insípida, da Princesa Isabel. Aliás, para compreender melhor o gênero humano, seria interessante saber como pode ter sido gerada esta generosa visão no próprio ventre da sociedade escravocrata.
A questão essencial, porém, é que toda esta realidade precisa ser vista, estudada e compreendida a partir de um ponto de vista não negro, nem europeu, mas universal. A visão eurocêntrica não deve ser substituída por uma visão centrada na África. A tarefa de construir a igualdade exige uma visão que compreenda e aceite a diversidade também no seu campo de leitura do mundo.
É BENÉFICO E URGENTE COMPREENDER E ASSUMIR
VALORES CULTURAIS INDÍGENAS E NEGROS
Mais uma vez repetimos: é preciso ouvir também os indígenas. E, de novo, esta insistência não é fruto da generosidade de nossos sentimentos igualitários, mas da relevância que os indígenas vem assumindo na atualidade, como resultado das suas lutas históricas. Hoje, estão exercendo papel decisivo na evolução política do Equador e do Paraguai; lideram movimentos revolucionários no México e se articulam em todo o continente americano, do extremo norte, no Canadá, ao extremo sul, no Chile. Na Bolívia lideram uma ampla coalização de forças populares que assumiu o governo do país e vem trazendo contribuições surpreendentes (pelo menos aos olhos do eurocentrismo) para a vida política contemporânea, como a Declaração dos Direitos da Terra.
Novamente, vale insistir na importância de superar a visão eurocêntrica da História ao analisar também estes fatos. Como vimos anteriormente, é possível ao “racismo cordial” ter autêntica generosidade em relação aos povos negros e indígenas. Esta generosidade, porém, não consegue ir além da pretensão de “elevar” seres humanos de outras raças ao estágio civilizatório alcançado pela sociedade branca, o que já é outra forma de manifestar a crença na “superioridade” de uma raça sobre as outras. Este “estágio civilizatório”, porém, trouxe a humanidade à beira de um precipício: a contradição entre um mundo físico limitado e um sistema econômico cuja essência é a expansão permanente.
É muito plausível, aliás, que neste momento histórico, seja muito mais benéfico – e urgente – para a humanidade, compreender e assumir valores culturais e civilizatórios indígenas e negros do que incluir negros e indígenas na “civilização” ocidental. A visão da sociedade dominante só consegue conceber a ascenção social de negros, indígenas – e mestiços – como sua “inclusão” numa classe média submetida à engrenagem suicida da economia capitalista, eufemisticamente chamada de “sociedade de consumo”. E isto, aliás, também vem acontecendo. A mais clara evidência deste fato é a contaminação do rap norte-americano, pela banalidade, pelo individualismo e pelo hedonismo do showbiz. O exemplo serve para dimensionar o poder do capital e de sua ideologia: domesticaram (?) uma manifestação musical gerada num movimento de resistência cultural caracterizado por fortes valores coletivos e contestatórios.
É com muita alegria que coloquei o ponto de interrogação, no parágrafo acima. Lembrei do importante movimento de conscientização que continua se desenvolvendo a partir da cultura hip-hop, centrada na periferia paulista... Lembrei da maravilha dos saraus de poesia promovidos pelo poeta Sérgio Vaz e pela comunidade de Taboão da Serra...
De qualquer forma, devemos ter presentes duas reflexões importantes. A primeira é que compreender e assumir valores culturais negros e indígenas não significa santificá-los, ou, em outras palavras, abster-se da visão crítica. A segunda é que a evolução das culturas negras e indígenas se dará em processo de fusão com valores ocidentais e orientais. Terá relação também com o que hoje acontece com os povos do Extremo Oriente, com o mundo muçulmano, com os povos da África, da Europa e do resto da América. E terá relação também com as tecnologias do mundo moderno.
TALVEZ O FUTURO DESEJADO POR ESTAS COMUNIDADES
NÃO SEJA O DE MORAR EM BLOCOS DE CONCRETO
O fundamental, de qualquer forma, é que a compreensão de outros pontos de vista transforma nossa visão de mundo. Olhar para a História com olhos indígenas joga por terra a primeiro e fundamental conceito que as crianças aprendem em sala de aula sobre o Brasil, ou seja, que ele foi “descoberto” pelos portugueses. Aos olhos indígenas, o Brasil nunca foi descoberto. No mínimo, o Brasil foi invadido. Brasil? De que lugar estamos falando? De onde vem este nome? Como se pode perceber, a diferença de ponto de vista muda o próprio mapa do mundo. Aqueles que chamamos generalizadamente de “índios” são muitos diferentes povos, culturas e nações! Ou alguém acredita que os Incas foram extintos? Ou que os Guaranis deixaram de existir? As fronteiras que eles vêem, porém, são diferentes daquelas que percebe a sociedade ocidental. E, já que estamos falando em História, também é diferente o futuro que desejam.
E, se a História brasileira fosse contada com a voz dos negros? Seriam diferentes os mapas e as nações. Seria outra a compreensão do que é a vida e, ainda, outro o futuro. Talvez o futuro desejado pela maioria das comunidades negras, por exemplo, não seja o de morar em blocos de concreto, encurraladas e distantes dos amigos e parentes (já observamos a grande importância da família para as comunidades negras, muito mais ampla e inclusiva do que a família da moderna cultura ocidental). Por outro lado, talvez, nos bons sonhos de quem dorme nas favelas, muito mais do que blocos de concreto, exista uma polícia que não chegue dando tiro em tudo que é preto e se move, sem pensar se é sobrinho, filho, neto ou enteado de quem quer que seja.
Todas estas considerações nos levam à necessidade de compreender a existência de uma História Popular ainda diferente daquela que pode ser percebida apenas com olhos indígenas, negros ou europeus. Nos convidam a erguer ainda pouco mais o olhar, para compreender que nenhuma se conta sem a outra. E que nenhuma tem futuro sem a outra.