domingo, 23 de janeiro de 2011

Preconceitos na História de Novo Hamburgo - Uma avaliação crítica da bibliografia existente











Qual a contribuição de índios e negros para a formação de Novo Hamburgo?

A bibliografia disponível sobre a história de Novo Hamburgo e do Vale do Sinos é limitada tanto no número de obras como em sua abordagem. Junto à Biblioteca Municipal, onde fomos procurar livros sobre o tema, encontramos apenas três títulos. Os três centram-se na figura do imigrante alemão, retratado como uma espécie de herói, dotado de virtudes raras, como disciplina, operosidade e apego a valores morais, que lhe permitiram superar enormes dificuldades que encontrou no Brasil e criar uma comunidade que se distingue, no país, por sua prosperidade.

Sabendo-se que, hoje, a presença dos descendentes de alemães, embora ainda significativa, é minoritária entre os habitantes do município, a autora considerou importante verificar que tipo de participação tiveram outras etnias na estruturação desta comunidade e comparar as diferentes condições históricas em que puderam desenvolver-se. Sendo quase inexistente a documentação referente a outros grupos sobre Novo Hamburgo, buscou-se a comparação com base em obras que retratam estas condições no Brasil e no Rio Grande do Sul.
O estudo poderá servir, quem sabe, como indicativo para pesquisas mais profundas e para uma compreensão mais crítica e mais humana de nossa História.

Apenas como hipótese, vamos supor que um estudante cafuzo, ou seja, descendente de índios e africanos, residente em Novo Hamburgo, vá à Biblioteca Municipal e solicite um livro sobre a história da cidade. Quase com certeza, receberá, para informar-se, a obra “Novo Hamburgo: Sua história, Sua gente” (Editora Pallotti, 1976), da professora Liene Martins Schütz. É o livro com maior abundância de exemplares na Biblioteca e a referência mais comum utilizada nas escolas do município para instruir-nos sobre como a cidade constituiu-se e veio a desenvolver-se.
Embora negros e descendentes de índios sejam numerosos nesta cidade, o que se percebe facilmente em suas fábricas e vilas, o estudante cafuzo praticamente não encontrará referência à participação destas etnias na história de Novo Hamburgo. No máximo, alguns trechos rápidos sobre os índios, onde SCHÜTZ (1976, p. 82) explica que os Charruas e Minuanos que ocupavam estas terras “não souberam utilizá-la, porque eram não só de cultura incipiente como em número reduzido”.

Em contraste, sobre os imigrantes alemães, SCHÜTZ (1976, p. 82), ensina que suas virtudes, “como o senso decidido, ordeiro, pacífico, forte e empreendedor, são visíveis na população hamburguense”. Leitor atento, o estudante cafuzo descobrirá, sempre segundo SCHÜTZ (1976, p. 27), que “a melhoria da raça e a utilização do trabalho livre foram as principais causas” da vinda destes imigrantes ao Brasil.

Será informado ainda sobre as enormes dificuldades que os imigrantes superaram, recebendo “somente o pagamento das passagens, o pagamento de 1 franco por dia, que foi pago através de víveres fornecidos por pessoas sem escrúpulos, e a concessão de 160.000 braças quadradas de terra”. SCHÜTZ (1976, p.27). Certamente ficará indignado com a espantosa “falta de apoio do Governo”, listada entre as “inúmeras dificuldades” que os fundadores de Novo Hamburgo enfrentaram ao se estabelecerem.

Já admirado com a perseverança, com a obstinação e a fortaleza de caráter destes colonizadores, o estudante cafuzo continuará percorrendo as páginas do livro, quase sem encontrar referências aos seus antepassados índios e negros. Até chegar ao seguinte educativo texto, onde a autora, finalmente, comenta a contribuição de outras etnias a esta comunidade:

“Nota-se, contudo, a falta de um maior acervo cultural, nas populações, por terem sido os nossos antepassados mais obreiros. O pouco cultivo das mais puras tradições ocasionou o fato de a nossa comunidade se expandir em torno do setor secundário. Voltou-se ela para a industrialização e este fato acarretou, para o município, um contingente humano flutuante, grande parte mestiços, que vieram em busca de trabalho, ingressando no grande número de indústrias do município como operários. Esta gama de população, não sendo muitas vezes fixa, alimentando outros princípios e tradições e, muitas vezes, desconhecendo as suas próprias origens, pelo baixo padrão cultural, conviveu e convive na comunidade, influenciando-a profundamente ”. SCHÜTZ (1976, p. 82).

É pouco, mas o estudante cafuzo já tem alguma informação sobre a importância histórica de seus antepassados em Novo Hamburgo. Os índios não souberam utilizar a terra. Os negros, por sua vez, lembrados eufemisticamente apenas como “mestiços”, contribuíram para limitar o desenvolvimento cultural da cidade.

Perseverante, o cafuzo curioso continuará sua busca, instruindo-se através de uma obra muito freqüentemente citada em sua primeira leitura, “Novo Hamburgo: O florescente município do Vale do Rio dos Sinos”, de Leopoldo Petry. O título já antecipa o comprometimento do autor e sua intenção de louvar as virtudes da cidade. Novamente, o estudante lerá muitas páginas dedicadas ao enaltecimento do imigrante alemão e sua capacidade de enfrentar e superar as imensas dificuldades que encontrou ao estabelecer-se em terra estranha.

Alguma referência encontrará sobre outras etnias. Sobre os indígenas, por exemplo, o autor ensina:

“Com a chegada do homem branco, os indígenas da região colonial foram se retirando mais para o interior das selvas, donde, por algum tempo, ainda inquietaram os imigrantes, tendo mesmo morto e aprisionado alguns deles. No entanto, com o desenvolvimento da colonização, esse perigo desapareceu de todo. Também, na margem esquerda do rio do Sinos, viviam numerosos descendentes de indígenas, os quais, porém, na época da chegada dos colonos alemães, já estavam civilizados. Eram os moradores de Santa Maria do Butiá, também conhecida pelo nome de Santa Maria dos Caboclos; não hostilizaram os imigrantes alemães, mas, com eles, viviam em boa harmonia.” PETRY (1963, p. 26).


Privilégios do imigrante alemão no Brasil

Petry oferece também alguma informação sobre raras famílias de colonos italianos que se instalaram no município e um rápido relato sobre açorianos estabelecidos na área onde hoje se localiza o bairro Rincão:

“No mesmo ano da vinda dos colonos alemães, em 1824, também foi povoado, neste município, o Rincão dos Ilhéus, com 9 famílias de imigrantes, composta ao todo de 48 pessoas, vindos das ilhas dos Açores, em fins do século XVIII... “Essa colonização de ilhéus, ao contrário do que acontecia com os açorianos de outras zonas, pouco se desenvolveu. Apesar de trabalhadores e ordeiros, não prosperaram, pois, tendo vindo de zonas onde a vida, os costumes, os métodos de lavoura e as culturas diferiam substancialmente das condições predominantes em nossa zona rural daquela época, a maioria deles não conseguiu adaptar-se ao novo meio, e, sem assistência por parte dos poderes públicos, alguns se retiraram para outros centros...” PETRY (1963, p. 26 e 27).

Lido distraidamente, o texto quase não chama atenção. Mas, parece-nos profundamente revelador se o examinarmos com algum cuidado. Observemos o tom de simpatia de Petry para com os açorianos, qualificando-os como trabalhadores e ordeiros e justificando seu insucesso como resultado das condições adversas que encontraram e da falta de assistência dos poderes públicos. Cabe a pergunta: não foram exatamente as mesmas as condições adversas que os imigrantes alemães enfrentaram e venceram? Não havia faltado, também aos imigrantes alemães, o apoio dos poderes públicos? Eram, portanto, de alguma forma, superiores aos açorianos?

Na mesma página, Petry transcreve um ofício governamental escrito alguns anos após a chegada dos alemães, infelizmente sem precisar a fonte, mas de extremo interesse para nosso estudo:
“Conforme outro ofício... Sua Majestade Imperial dignou-se mandar manifestar o muito que havia sensibilizado seu Paternal Coração a desgraçada sorte das nove famílias mandadas vir das Ilhas dos Açores, jaziam aí acantoadas, sem o mínimo estabelecimento, determinando que fossem contempladas na partilha de quatrocentas braças de terreno, para cada casal, nesse local, na forma concedida aos colonos alemães”. PETRY (1963, p. 27).

Está suficientemente claro que, aos colonos alemães, alguma vantagem havia sido concedida. Sobre este assunto, entretanto, Petry não irá se debruçar. Por uma questão de justiça, sequer devemos esperar isto de sua parte, uma vez que o trabalho de pesquisa que desenvolveu não buscava este fim, mas simplesmente transcrever a “História” em que sua comunidade acreditava.

Teremos que buscar, portanto, em outras obras, o esclarecimento sobre as vantagens com que os imigrantes alemães foram agraciados. Uma coletânea de estudos sobre a imigração européia no Rio Grande do Sul, RS: Imigração e colonização, organizada por José H. Dacanal e Sérgius Gonzaga, começa a lançar luzes sobre estas questões.

De início, vamos procurar compreender como e porquê os imigrantes alemães vieram parar aqui.
LANDO e BARROS (1980, p. 19) ensinam que “os imigrantes que se dirigiram para o Rio Grande do Sul eram atraídos por uma política governamental que pretendia, fixando-os à terra, formar colônias que produzissem gêneros necessários ao consumo interno” brasileiro, uma vez que a mão-de-obra escrava era inteiramente dedicada às atividades voltadas à exportação. Além disto, destacam também a importância militar da presença destes colonos, fornecendo mantimentos, no extremo sul do país, perto das disputadas fronteiras do Brasil com Argentina, Uruguai e Paraguai.

GIRON (1980, p. 55), complementa afirmando que “é, portanto, na substituição da mão-de-obra servil pela mão-de-obra européia e branca, vinculada ao racismo... que serão encontrados os principais fatores que determinaram a imigração européia”. Esta motivação tinha raízes tão profundas, que não se manifestava apenas na crença da superioridade dos europeus sobre os brasileiros, mas também criando distinção entre diferentes nacionalidades da Europa. É ainda GIRON (1980, p. 56) quem informa que, quando a vinda dos imigrantes alemães “foi impedida pelo governo germânico, foram procurados outros povos. A preferência pelos arianos baseava-se na crença de sua superioridade sobre os ‘degenerados’ latinos...”.

Dois motivos já estão bem claros. O primeiro deles era de ordem econômica e militar. O segundo, ideológico, prendia-se à desconfiança das elites em relação ao próprio povo brasileiro.
O governo do nascente império entendia existir urgente necessidade de povoar o sul do Brasil, para criar um núcleo de abastecimento para as forças que defendiam suas fronteiras. Ao mesmo tempo, este núcleo forneceria bens de consumo, especialmente alimentos, para outras regiões do Brasil, voltadas a atividades exportadoras.

É fundamental frisar que o governo imperial atribuiu máxima importância a esta política. RIBEIRO (1995, p. 436) diz que:

“o empreendimento colonizador foi um dos objetivos mais persistentemente perseguido pelo governo imperial, que nele investiu enormes recursos, assegurando aos colonos o pagamento de transporte, facilidades de instalação e de manutenção e concessões de terras.”

Segundo LANDO e BARROS (1980, p. 22) a colonização, nos moldes que era feita, tornou-se tão onerosa que o governo teve que “apelar para recursos de particulares para propiciar a continuidade do processo imigratório”. GIRON (1980, p. 55) volta a nos auxiliar com alguns números referentes à colonização italiana no Rio Grande do Sul:

“O lucro do governo seria proveniente da venda das terras. No caso da colônia Caxias, o lucro da venda das 144.000 braças quadradas, que compunham a colônia, foi de 720:000$000. Esta soma torna-se irrisória se comparada ao gasto de 739:440$000, preço para a introdução de 10.000 novos colonos, pagos pelo governo imperial e pelo governo provincial. Foi calculada, no período de 1871-1881, a entrada de 4.000 colonos por ano, totalizando 40.000, o que representaria um gasto de 295.760 contos de réis, o que é uma cifra impressionante, se comparada à exportação brasileira na mesma década, que foi de 1.537.175 contos, o que corresponde a 21% da receita brasileira do período”...

Note-se, a propósito, que os imigrantes alemães foram bem mais favorecidos do que os italianos que vieram para o extremo sul. A estes últimos, a terra não foi dada, mas vendida, com financiamento oficial. Mesmo assim, os italianos que vieram para o Rio Grande do Sul tiveram vantagem sobre aqueles que se estabeleceram em São Paulo, para onde, nas palavras de LANDO e BARROS (1980, p. 19), “o imigrante vem contratado para o trabalho assalariado nas lavouras do café”, não mais como proprietário de terras financiadas. O destino a estes proposto não era o de se tornarem pequenos proprietários, mas mão-de-obra assalariada nas fazendas de café, em substituição aos escravos negros.

A colonização européia no Rio Grande do Sul, portanto, foi um episódio de características únicas na História brasileira. Segundo questiona GIRON (1980, p.64): “O caráter particular deste tipo de colonização não encontra similar em outras regiões... Foi o Brasil, possivelmente, o único país a montar uma empresa de colonização visando o benefício e não a exploração de estrangeiros”. E, dentro desta situação, conforme vimos há pouco, os imigrantes alemães foram especialmente beneficiados.

Uma visão menos épica das dificuldades dos imigrantes

Cabe, neste momento, perguntar do que falam, afinal, os historiadores locais quando decantam as dificuldades com que se defrontaram os fundadores de Novo Hamburgo e o abandono a que foram relegados pelo governo brasileiro. Para socorrer-nos, PETRY (1963, p. 38) nos traduz a carta em que um imigrante relata o trabalho que enfrentaram e da qual transcrevemos alguns trechos:

... ”Na Feitoria ficamos um ano inteiro, esperando que nos fossem indicados os lotes, que nos tinham sido destinados. ... A ferramenta nos fora fornecida pelo Governo, mas, não conhecíamos os métodos para trabalhar nessas imensas florestas virgens. ... Os produtos de nossas lavouras tinham de ser levados às costas até aquelas vendas (em São Leopoldo).”

Na verdade, basta um pequeno exercício de imaginação, quando lemos este e outros documentos, para compreender que, de fato, os colonos trabalharam arduamente. Não é intenção deste trabalho negar-lhes este mérito. Até certo ponto, o porte dos desafios vencidos explica o orgulho dos cronistas.

Os registros históricos também demonstram que não foram integralmente cumpridas as promessas feitas para convencer os alemães a se aventurarem no desbravamento de terras desconhecidas. Compreende-se, portanto, que os colonos tenham relatado queixas a seus descendentes. Mas, daí a ignorar o favorecimento oficial, vai uma distância enorme. Ao transcrever o trecho da carta acima mencionada, em que o imigrante informa que tinham que carregar seu produto às costas, o próprio PETRY (1963, p. 39) faz o reparo de que o governo imperial colocou muitos cavalos à disposição dos colonos. Os animais acabaram sendo utilizados, mas antes os alemães tiveram que aprender a lidar com eles.

Mesmo nestes registros e relatos, o exame atento perceberá que os imigrantes europeus no Rio Grande do Sul foram extremamente favorecidos, se comparadas as condições em que vieram estabelecer-se no Brasil à sorte de outras etnias que também contribuíram para a construção deste país:

“Os primeiros colonos que se localizaram em São Leopoldo foram privilegiados, tendo recebido a maior parte do que lhes fora prometido. Já a segunda leva de imigrantes, que chegou também em 1824, encontrou sérios problemas, sendo o principal deles a inexistência de demarcação de suas terras. Em vista disso, viu-se o Governo Alemão na contingência de intervir, o que resultou, depois de dois anos, numa mudança de atitude por parte do Imperador, autorizando o pagamento das passagens, do subsídio diário e a concessão gratuita de lotes de terra”. LANDO e BARROS (1980, p 28).

Está suficientemente evidenciado que os colonos não estavam tão isolados e desassistidos, uma vez que conseguiam comunicar-se com sua terra natal e as autoridades de seu país interviam em seu favor, junto ao governo brasileiro. Não apenas os distantes governos de seus países cuidavam da sorte dos imigrantes, mas também instituições religiosas. DACANAL (1980, p. 275) observa que “... o imigrante em geral ... teve a velar por ele uma instituição com a razoável experiência de dois mil anos: a Igreja Católica.” Cabe perguntar quem intervia em favor dos negros escravizados e dos índios chacinados nesta terra.

Novamente, trechos da carta que Petry utiliza para ilustrar o sofrimento dos imigrantes servem também para evidenciar as vantagens que tiveram na comparação com outros grupos étnicos:

... “Quando navegamos perto do equador, onde mais intenso se faz sentir o calor do sol, a água nos era fornecida em quantidade insuficiente e de má qualidade, o que motivou vários casos de doença entre os passageiros... Nomeamos uma comissão, que foi apresentar nossas reclamações ao comandante: este, porém, irritou-se e mandou postar um canhão na popa do navio, com o fim de nos atemorizar. Não conseguindo, todavia, seu intento, mandou satisfazer nosso justo pedido.” PETRY (1963, p. 39).

Porventura podiam os escravos, nos navios negreiros, sequer pensar em organizar uma comissão para reclamar da qualidade água que lhes era fornecida?

A verdade histórica, por tudo que vimos, está bem distante da versão épica que atribui o desenvolvimento de Novo Hamburgo – e da vasta região gaúcha colonizada pelos imigrantes europeus – a uma suposta superioridade destes. Se estabelecermos comparações honestas, parece bem mais plausível que os imigrantes europeus no Rio Grande do Sul foram privilegiados. De forma muito particular, os alemães. Entre eles, os fundadores de Novo Hamburgo.

Segundo GIRON (1980, p. 66), “a imigração foi uma empresa montada para favorecer a força de trabalho européia... Os imigrantes foram os beneficiários de uma experiência inédita, não os feitores da mesma. Para assegurar o êxito das colônias, foram empenhados apreciáveis recursos, que poderiam ter sido aplicados em benefício da própria população brasileira”.

Ainda conforme GIRON (1980, p. 64), “se a mesma forma de empreendimento tivesse sido adotada em relação aos brasileiros, ou aos escravos libertos, estes não teriam enfrentado, como enfrentaram, o grave problema de exclusão da sociedade brasileira”.

Não apenas sobre os indígenas e negros, mas também sobre outros imigrantes vindos ao Rio Grande do Sul, os alemães tiveram importantes vantagens.

Segundo afirma MOURE (1980, p. 95), “no final do século XVIII, teve início a estruturação de uma sociedade em moldes de produção agrícola, com base na média propriedade, trabalho familiar... Esta foi a colonização açoriana, localizada em Viamão, Santo Antonio da Patrulha, Mostardas, Triunfo, Osório e Santo Amaro, logo desarticulada por problemas ao nível da produção (confisco governamental frente às instabilidades político-administrativas com a região platina, ferrugem na triticultura) e de comercialização (dificuldades de transportes para o escoamento da produção, mercado competitivo)”.

Ao invés de cavalos, ferramentas e suprimentos para os primeiros tempos na nova terra, o confisco da produção. Além disto, foram jogados em terras realmente isoladas. Aliás, foram justamente eles que criaram o mercado próximo, que tornou possível o desenvolvimento da colônia alemã.

RIBEIRO (1995, p. 428) diz que “alguns açorianos empreendedores escaparam, porém, à caipirização, seja levando adiante cultivos próprios de cereais, principalmente de trigo, seja fazendo-se comerciantes dedicados a traficar mantimentos com a gente da área pastoril. Nasceu, assim, um movimento mercantil que deu alguma viabilidade aos vilarejos que surgiam e começou a integrá-los dentro do sistema econômico incipiente da região”.

A situação vivida por outros grupos étnicos

Nem seria necessário comentar a diferença entre o tratamento que receberam os fundadores de Novo Hamburgo e aquele dispensado aos índios e aos negros. Mas talvez fosse útil ao estudante cafuzo, uma vez que é rara a informação histórica sobre seus antepassados. RIBEIRO (1995, p. 30) comenta esta dificuldade, lembrando que “... só temos o testemunho de um dos protagonistas, o invasor... É ele ...que relata o que sucedeu aos índios e aos negros, raramente lhes dando a palavra de registro de suas próprias falas”.

No entanto, mesmo quando examinamos os documentos deixados pelo “invasor”, se o fizermos com atenção, perceberemos a extensão da tragédia que foi a vida do índio a partir da chegada do europeu ao Brasil.

“As crônicas coloniais registram copiosamente essa guerra sem quartel de europeus armados de canhões e arcabuzes contra indígenas que contavam unicamente com tacapes, zarabatanas e flechas. Ainda assim, os cronistas destacam com gosto e orgulho o heroísmo lusitano. Esse é o caso das loas do padre Anchieta a Mem de Sá, subjugador das populações aborígenes para escravizá-las ou colocá-las em mãos dos missionários. Anchieta, descuidado da cordura que corresponderia a sua futura santidade, louva assim o bravo governador:

Quem poderá contar os gestos heróicos do Chefe
À frente dos soldados, na imensa mata:
Cento e sessenta as aldeias incendiadas,
Mil casas arruinadas pela chama devoradora,
Assolados os campos, com suas riquezas,
Passado tudo ao fio da espada.


Esses são alguns dos 2 mil versos de louvação escritos em latim por José de Anchieta (1959:128) no poema `De Gestis Mendi de Saa` (circa 1560).” RIBEIRO (1995, p. 49 e 50).

Está claramente definida, pelo “defensor” dos índios, a política do governo branco em relação aos primeiros habitantes da terra.

Quanto aos negros, além de submetidos a toda a brutalidade da escravização, eram deliberadamente privados de sua identidade cultural:

“A diversidade lingüística e cultural dos contingentes negros introduzidos no Brasil, somada a ... hostilidades recíprocas que eles traziam da África e à política de evitar as concentrações de escravos oriundos de uma mesma etnia, nas mesmas propriedades, e até mesmo nos mesmos navios negreiros, impediu a formação de núcleos solidários que retivessem o patrimônio cultural africano”. RIBEIRO (1995, p. 115).

Os fundadores de Novo Hamburgo, longe de serem privados de sua identidade cultural, podiam falar sua língua e gozavam de liberdade de culto. A única restrição aos evangélicos, num país em que o catolicismo era a religião oficial, era a de erguer torres em seus templos. De resto, podiam até instituir escolas para educar as crianças de acordo com sua fé. Estes fatos estão documentados no livro “Ainda hoje plantaria minha macieira” (Editora Sinodal, 1993), em que a professora Erica SARLET relata a História da escola evangélica em Novo Hamburgo.
Nesta obra, aliás, a autora nos oferece novas informações sobre a absoluta disparidade das condições de vida e desenvolvimento entre os negros e os imigrantes alemães.
“Em um sistema escolar tão deficiente, surpreende encontrar-se uma legislação escolar com itens, especialmente dedicados aos negros...

... Lei no 14 de 22.12.1837 – Cap I, Art 3o.
São proibidas de freqüentar as Escolas Públicas:
Parágrafo 2o – Os escravos, e pretos ainda que sejam livres, ou libertos.” SARLET (1993, p. 25)

Ainda de acordo com SARLET (1993, p. 25 e 26), apenas em 1846, a proibição deixou de referir-se aos negros, “mesmo que livres ou libertos”, limitando-se apenas aos escravos. Passaram-se mais 40 anos até que, finalmente, a lei 1563, de 16 de abril de 1886, concedeu “o benefício de uma loteria para as Irmãs de S. Francisco, (em Porto Alegre), a fim de prepararem as acomodações indispensáveis para a criação de uma aula destinada ao ensino gratuito dos filhos de libertos e escravos.”

O livro da professora, permite-nos vislumbrar também como os filhos e netos dos imigrantes estabelecidos em Novo Hamburgo relacionavam-se com os negros. Naturalmente, ela pinta seu quadro com cores róseas. Ao comentar que os filhos de escravas dos hamburguenses mais ricos eram batizados com o nome de seu proprietário e que este também era seu padrinho, a professora se comove com a bondade de um dos professores evangélicos da época:

“Em relação ao assunto acima relatado, encontramos um registro digno de nota, pois lança uma luz especial sobre a personalidade do professor Karl Lanzer. Em 1865, ele havia casado com Maria Schmitt, filha de Johann Peter Schmitt... Três anos mais tarde, um mês após a morte de seu sogro, em julho de 1868, o professor Lanzer torna-se o primeiro padrinho, não-proprietário, de uma criança escrava. O seu afilhado é Carlos Schmitt, filho da escrava Luiza, agora de propriedade da viúva Katharina Schmitt.” SARLET (1993, p. 38).

O estudante cafuzo, por certo, também ficará tocado por tanta generosidade: o nobre professor não deixou sem batismo a “propriedade” de sua sogra!

Alguns parágrafos adiante, a professora volta a sugerir que o tratamento que os hamburguenses dispensavam aos seus escravos não era tão cruel: “Não há anotações sobre o destino dos escravos quando da abolição, em 1888. Há informações que vários teriam permanecido com as famílias, agora como empregados domésticos.” SARLET (1993, p. 38). Ao constatar que “nenhum nome de criança escrava ou nascida livre foi encontrado nas listas de confirmandos”, ela lembra “que a legislação proibia aos escravos o acesso ao ensino elementar” SARLET (1993, p. 37).

Curiosamente, o mesmo zeloso respeito às leis do país não era encontrado em outros momentos:
“A Lei Provincial no 183, de 18 de outubro de 1850, proibia a introdução de escravos nas áreas coloniais e os já existentes deviam ser registrados oficialmente. Embora houvesse quem possuísse escravos sem registro, na época acima mencionada, durante 27 anos, 15 famílias de nossa paróquia batizaram 58 crianças, filhos e filhas de escravas”. SARLET (1993, p. 37).

Para sermos justos, devemos registrar que a obra da professora não transmite a seus leitores os mesmos preconceitos explícitos de superioridade racial dos alemães, encontrados em outras obras de autores locais. Mais importante, apesar dos malabarismos mentais com que busca minorar a relação de opressão racial existente na História da cidade, tem a coragem de documentar fatos que nos permitem vislumbrar a realidade.

O que se percebe, enfim, é que os fundadores de Novo Hamburgo, além de terem recebidos privilégios especiais ao se estabelecerem no Brasil, reproduziram a prática de opressão racial da sociedade que os antecedeu.

Desde então, a disparidade, embora se atenuando, veio se reproduzindo. Entrevistamos um descendente dos imigrantes alemães para informar-nos sobre a situação posterior do negro em Novo Hamburgo, uma vez que não encontramos documentos que apresentassem registros sobre esta realidade. O entrevistado é Carlos Mosmann, jornalista que ocupou a Secretaria Municipal de Indústria, Comércio e Turismo, ocasião em que propôs legislação para estimular a preservação do patrimônio histórico legado pelos imigrantes e seus descendentes, e, ao mesmo tempo, conviveu com a comunidade negra do município, estimulando que entidades como as escolas de samba fossem reconhecidas por seu papel cultural na cidade.

Segundo o jornalista, com base em informações orais que colheu, a comunidade negra de Novo Hamburgo continuou enfrentando condições de vida muito mais difíceis do que as dos demais habitantes da cidade e forte segregação. Até a década de 1940, o racismo era tão intenso que o nome de algumas localidades era determinado pela etnia dos seus habitantes. Um destes lugares era o bairro hoje conhecido como Guarani. Habitado por negros, era conhecido como “África”. O bairro Rio Branco era chamado de “Mistura”, por abrigar tanto famílias brancas como negras. Mosmann observa que ambas as localidades eram separadas do núcleo central de Novo Hamburgo pelos arroios que hoje acompanham o trajeto das avenidas Nicolau Becker e Nações Unidas. Segundo seu relato, até a década de 1930, pelo menos, as crianças descendentes dos imigrantes alemães eram proibidas de cruzar estes arroios, explicitamente para evitar que tivessem contato com pessoas de outras etnias.

O relato mais dramático, porém, refere-se ao nome do atual bairro Primavera, especificamente a área contígua à atual escola Liberato Salzano. Antes de se adotar o sistema de fossas sépticas na cidade, as fezes e a urina das famílias residentes na área urbana eram recolhidas em espécies de urnas e, semanalmente, tinham seu conteúdo jogado naquela área, que tinha o sugestivo nome de “Limpeza”. Justamente ao lado deste local, vivia um dos mais numerosos grupos de negros da cidade, antecessores da comunidade que hoje se constitui no núcleo da Escola de Samba Cruzeiro do Sul. Mosmann explica que a penúria dos negros era tão grande que, por não ter nenhum valor econômico, aquele local era uma das raras áreas onde podiam se estabelecer.

A segregação não acontecia mais pela força, mas pela reprodução das diferenças de oportunidades, oculta pelos preconceitos culturais. Os descendentes de alemães, dizia-se, eram bem sucedidos por serem operosos e disciplinados. Os negros, segundo o mesmo preconceito, viviam em situação de pobreza por serem preguiçosos e ignorantes.

A necessidade de uma nova versão desta História

Vimos que a literatura existente sobre a História de Novo Hamburgo reproduz preconceitos que prejudicam o pleno desenvolvimento de uma sociedade realmente democrática e pluralista, em que as pessoas não sejam submetidas a julgamentos prévios em função de sua origem étnica. Embora seja evidente o progresso que fizemos, a aceitação de obras que, mesmo sem má intenção ou má fé, sustentem conceitos de superioridade de um determinado grupo étnico, só contribuem para deformar nosso conhecimento da realidade histórica. Esta é a literatura recomendada em nossas escolas e é profundamente injusto que o estudante cafuzo tenha que estudar a História de sua cidade em livros que ignoram o que sucedeu a seus antepassados, enquanto afirmam a superioridade de outras raças. É injusto porque esta falsa “História”, ensina que a situação de desvantagem em que ainda se encontra a maioria dos brasileiros - negros, índios, mulatos e cafuzos - é fruto de uma deficiência invencível, que carrega em seus gens. Dando ares de saber científico a este preconceito grotesco, no mínimo, desestimula a luta honesta por uma vida melhor.

Um comentário:

  1. Leira Salete, boa tarde!

    Meu nome é Aldo Giacomo Berardinelli Fº, moro em Florianópolis, email aldogbf@gmail.com.
    Estou interessado em obter informações sobre a chegada da família Vielitz em Novo Hamburgo.

    Como também se houve na época da colonização algum tipo de confronto com índios.

    Dede já te agradeço.

    Aldo

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