sábado, 30 de abril de 2011

SEBASTIÃO


Tem uma lágrima, ainda, pendurada no meu olho. Acho que vai ficar aqui para sempre. É uma lágrima de tristeza, sim. Mas também é de alegria. De tristeza e alegria, como o samba sabe misturar. E de orgulho. Muito orgulho do meu povo, que sabe fazer gente como o Sebastião Flores. Como a dona Nair. Como a Teresa. Como a Janete. Como o Crush. Como tantos que se foram ou que irão, mas todos deixando sementes que Sebastião soube cultivar com sabedoria e regar com paixão.

Juro, porém, que não terei saudades. A saudade, enorme, vou matar cada vez que entrar na quadra da Protegidos, porque ele vai estar lá, feito um preto velho que não abandona seus filhos. Isto, aliás, é bem da nossa cultura, que trazemos lá da mãe África. Nós sempre respeitamos e trazemos conosco, acima de nossas cabeças, a presença e a herança de quem veio antes e cuidou de nós. É assim que respeitamos também nossos filhos e netos, transmitindo a eles a presença e a herança de muitas gerações.

Foi pensando nisto, na importância da herança que ele nos confiou, que procurei alguns vereadores de Novo Hamburgo para sugerir que batizassem a nova Escola Infantil, que a Prefeitura de Novo Hamburgo está concluindo, ao lado da quadra da Protegidos, do campo do Rondônia e das famílias do Morro da Formiga, com o nome de Sebastião Antonio Flores. Soube, então, que a Escola já tem o nome, votado pela Câmara Municipal, de João Campagnoni. Me contaram também que existe uma lei proibindo homenagear pessoas antes que se passe um ano de sua morte.

Mesmo assim, no meu coração bate a certeza de que faria um bem enorme, a todas as crianças e à comunidade do Morro da Formiga, a toda comunidade carnavalesca de Novo Hamburgo, à cultura da nossa cidade, à causa da integração e da igualdade étnica, considerar seriamente esta homenagem. Vou insistir nesta idéia.

De qualquer forma, fica a certeza de que ele continua conosco, agora acima de nossas cabeças, nos inspirando e nos orientando.

Acima da tua cabeça, Negra Rose.

E da tua, Lu Astral.

De toda a comunidade. A partir de agora, ele faz parte de todos nós. E todos nós somos parte dele.

Certo, Sebastião?

domingo, 24 de abril de 2011

NAPOLEÃO III CONTRA AS LAVADEIRAS TAGARELAS

Este trabalho foge um pouco do espírito deste blog, por não tratar diretamente da questão étnica. No entanto, foi uma das pesquisas em que mais aprendi sobre como a História pode ser estudada a partir de novos ângulos. Examina as transformações dos papéis do homem e da mulher no sistema capitalista em formação. Com base nas idéias de dois textos que estudam com muita originalidade este período histórico (o Capítulo 3 de “Os Excluídos da História”, em que a autora, Michelle Perrot, investiga “a dona-de-casa no espaço parisiense no século XIX”; e o livro “O nascimento das fábricas”, de Edgar de Decca), verificamos como a mulher proletária explorou os espaços de liberdade que lhe foram dados pela sociedade capitalista em formação e como as classes dominantes reagiram.

É uma visão muito interessante e até divertida. Merece nossa atenção, não só por isto, mas pelo muito que ensina sobre o mito da eficiência da sociedade capitalista e pelas múltiplas formas que assume a ação das classes dominantes para impedir a ascenção dos dominados.

Em 1853, Napoleão III contratou engenheiros ingleses para uma obra inusitada: uma moderna lavanderia pública, planejada de forma a proporcionar a espantosa e decantada eficiência das fábricas que estavam revolucionando a Europa. Como numa fábrica, o projeto previa a dissociação das diferentes operações exigidas pela lavagem de roupas, numa sequência racional que tornaria este trabalho mais rápido. Portanto, mais produtivo.

Para o espanto do governante, porém, quando a magnífica idéia tomou a forma de um belo prédio, foi boicotada pelas lavadeiras parisienses. Sem serventia, faliu e foi demolido. A razão do boicote, segundo os cronistas da época, estava no repúdio aos pequenos compartimentos onde cada lavadeira ficaria trabalhando isolada das demais. É evidente que elas não aceitariam ficar sem “tagarelar” com suas vizinhas.

“Tagarelar”. Foi exatamente este o verbo jocosamente utilizado para descrever a atividade das lavadeiras. Até hoje ainda fazemos esta ligação de forma automática entre as duas palavras. Lavadeira é sinônimo de tagarela. Tagarela é sinônimo de lavadeira.

O CENTRO DE SOLIDARIEDADE

Para Michelle Perrot, no entanto, as irrequietas lavadeiras não se preocuparam apenas com a perda do espaço para suas frívolas fofocas. O que estava em jogo, para elas, era a manutenção de um reduto estratégico da resistência operária ao rápido avanço do capitalismo.

Perrot utiliza a descrição dos locais onde as lavadeiras trabalhavam encontrada num romance de folhetim da época, “A rainha do lavadouro”, escrito por Cardoze, para evidenciar a importância deste espaço público. O autor descreve o local como um campo adormecido, antes de chegarem as mulheres, onde são vistos apenas seus instrumentos de trabalho, todos individuais. De início, todas se dedicam integralmente ao serviço e tudo que se ouve é o som das roupas sendo batidas, esfregadas, mergulhadas na água e torcidas. Depois de algum tempo, algumas vozes se ouvem, até que seu alarido se sobrepõe ao barulho dos batedouros.

A partir de então, o lavadouro, sem deixar de ser um local de trabalho, transforma-se num autêntico centro de informações. Primeiro chegam cafeteiros e pasteleiros para vender refeições baratas às lavadeiras. Quando deixam o trabalho para comer, elas se alimentam também de informações, falam do bairro, dos maridos, dos filhos (muitas trazem as crianças com elas). Além disto, a folga é aproveitada por vendedores ambulantes que oferecem todo o tipo de mercadoria. Entre eles, estão os fotógrafos, que além de retratar as lavadeiras, oferecem fotos de atrizes e mundanas famosas. Também estão as cartomantes. E os cantores ambulantes, trazendo canções novas, cantando sucessos antigos e animando a dança das mulheres.

Além de centro de trabalho, troca de informações e lazer, o lavadouro também era um centro de solidariedade e de ajuda mútua. Trocam-se receitas; informam-se endereços de parteiras; são feitas coletas para ajudar uma mulher em situação de dificuldades, seduzida, abandonada e, agora, mãe solteira.

MUITO ALÉM DA EFICIÊNCIA

Já está claro, a esta altura, que o que as lavadeiras defendiam era muito mais do que o direito à frivola “tagarelice”. E esta evidência nos leva a perguntar se o desejo de Napoleão III, ao projetar e construir sua moderna lavanderia inspirada nas fábricas, estava limitado apenas a imprimir maior eficiência ao trabalho das lavadeiras.

A elite governante e a burguesia, conforme observa Michelle Perrot, viam os lavadouros com muita reserva. Ela observa que nosso autor de folhetim, Cardoze, divide as mulheres em três categorias: as profissionais, que lavam para as famílias burguesas; as donas-de-casa que lavam suas próprias roupas e, entre estas, as mulheres que lavam para si mas também arrumam alguns trocados fazendo o serviço para uma comerciante ou uma amiga um pouco mais afortunada.

As autoridades desconfiam e temem o fruto deste convívio. Que tipo de conversa corre entre as lavadeiras? Que informações trocam entre elas? A desconfiança assume uma forma moralista, bem ao gosto, aliás, da burguesia ainda puritana, inimiga do prazer e de tudo que possa atrapalhar a produtividade no trabalho. Entre estas mulheres, certamente estão prostitutas e realizadoras de abortos. Não é exatamente este o local onde trocam endereços de parteiras? Ou não seriam endereços de fazedoras de abortos? Não é exatamente este o local onde as mulheres fazem coletas para ajudar as mães solteiras?

A indignação moral talvez fosse mais uma fachada, um véu para encobrir a verdadeira preocupação: um local onde pessoas do povo gozam de liberdade e praticam solidariedade pode ser muito perigoso. De fato, apenas cinco anos antes do mirabolante projeto de Napoleão III, em 1848, quando o povo abriu as portas da prisão Saint-Lazare, uma das iniciativas das presidiárias foi organizar uma oficina de lavadeiras. Sem dúvida, é muito plausível a hipótese de que, muito além da eficiência, entre os objetivos mais ardentemente acalentados pelo governo, estava o de isolar as lavadeiras, separando-as em cubículos e impedindo-as de conversarem.

O NASCIMENTO DAS FÁBRICAS

A reflexão de Michelle Perrot sobre a importância dos lavadouros parisienses está em sintonia com as observações de outro autor, Edgar de Decca, sobre a idéia da eficiência tecnológica e produtiva das fábricas, que considera ser um mito ideológico. Perrot conta que a lavagem de roupas, na Paris do século XIX inicialmente era feita a bordo de barcos atracados à beira do rio Sena. Depois foram transferidas para áreas públicas especialmente construídas com a finalidade de reunirem as lavadeiras. A lógica desta transferência, segundo a autora, era o desejo de controlar e disciplinar as mulheres proletárias. Napoleão III, com sua idéia de lavanderia-fábrica levou este desejo às últimas consequências.

Era exatamente esta mesma a lógica que, conforme Edgar de Decca presidia o sistema das fábricas. Napoleão III apresentou seu projeto com o argumento de que tornaria mais produtivo o trabalho das lavadeiras, mas tinha o objetivo oculto de isolá-las. Os burgueses, da mesma forma, montaram suas fábricas e desenvolveram suas máquinas não como forma de tornar mais produtivo o trabalho dos operários mas, também neste caso, conforme Decca, para ampliar progressivamente seu controle sobre a produção.

A tecnologia desenvolvida pela economia burguesa foi, desde o nascimento do capitalismo, voltada ao objetivo de retirar dos trabalhadores o controle sobre a produção. Edgar de Decca aqui se refere não aos meios físicos de produção, mas ao conhecimento necessário para realizá-la. Ele lembra que inicialmente o capitalista não detinha o controle sobre a produção, mas sobre o acesso ao mercado. Com isto, ele já se torna indispensável. Mas ainda não insubstituível, pois os artesãos que produziam as mercadorias para o capitalista dominavam integralmente o processo de produção. Conheciam todas as operações de todas as suas etapas.

Os artesãos trabalhavam em suas próprias casas e, em dado momento, o capitalista começou a forçar sua reunião num prédio único. A razão não era técnica. A dispersão dos trabalhadores facilitava o desvio de parte da produção; a falsificação de produtos; o uso de materiais de qualidade inferior àqueles fornecidos pelo capitalista. Para ele, isto era sabotagem. Para os artesãos, eram formas de resistir à perda do controle sobre o processo de trabalho.

Arriscamos acrescentar que, com os trabalhadores dispersos, qualquer aumento da produtividade revertia em benefício deles. Na fábrica, porém, o crescimento da produção, fosse proveniente de técnicas novas ou simplesmente do aumento das horas trabalhadas – e este era o caso quando as fábricas começaram a ser implantadas – se transformaria em ganho para o capitalista. Por isto e pela necessidade de combater a “sabotagem”, foi criada a fábrica. Ela é uma forma concreta, portanto, que assume a luta entre duas classes pelo controle do processo produtivo.

É claro que a tecnologia que se cria a partir deste momento tem o aumento da produtividade entre seus objetivos, pois isto proporciona aumento do lucro. No entanto, existe um fator seletivo fundamental para o desenvolvimento técnico: além de proporcionar maior eficiência, ele precisa também aprofundar o controle do capitalista sobre o processo produtivo. Ou, em outras palavras, retirar do trabalhador este controle. As máquinas e toda a tecnologia passam a orientar-se pela necessidade de compartimentar o trabalho, fazendo com o trabalhador deixe de ser um artesão, que conhece e executa todas as etapas da produção, e se transforme num operário, que se dedica a uma única operação.

O CONTROLE SOBRE O TEMPO

Cabe aqui notar outra semelhança importante entre a fábrica e a lavanderia projetada por Napoleão III. Ele queria que também o processo de lavagem fosse dividido em etapas dissociadas. Também as lavadeiras deixariam, portanto, de ter controle sobre seu trabalho. Existia alguma necessidade de ampliar a produtividade do trabalho das lavadeiras? A resposta é não, a julgar pelo que descreve o autor do folhetim que antes nos descreveu o que acontecia nos lavadouros. Ele conta que elas começavam o dia completamente concentradas no seu trabalho. Apenas depois disto começavam a conversar, se divertir e trocar informações. Isto indica claramente que o tempo de que dispunham era suficiente para lavar as peças de roupa que tinham sob sua responsabilidade. O que realmente angustiava Napoleão III não era a produtividade das lavadeiras, mas a necessidade de exercer controle sobre elas.

Napoleão III não foi bem sucedido em sua tentativa. Os capitalistas, no entanto, com suas fábricas, alcançaram todos os seus objetivos disciplinadores. E mais outros dois: 1) passaram a administrar a forma de produzir, tornando qualquer outra economicamente inviável, através da orientação dada ao desenvolvimento tecnológico; e 2) como consequência, adquiriram controle sobre o tempo dos trabalhadores. Não vamos nos alongar sobre o primeiro ponto. Embora seja extremamente importante, nosso foco, neste trabalho, está nas consequências deste processo sobre a vida familiar e sobre os papéis do homem e da mulher das classes trabalhadoras.

Antes do sistema de fábricas, os trabalhadores – artesãos – vendiam aos capitalistas as mercadorias que produziam em casa. A oficina dos artesãos era uma extensão de suas próprias casas. Os capitalistas eram simplesmente intermediários entre os produtores e o mercado. Com o surgimento das fábricas, os trabalhadores passaram a vender aos capitalistas, não mais as mercadorias que produziam, mas o trabalho que executavam. Em outras palavras, o produtor passou a ser o capitalista, que passou a pagá-los, não mais pelos objetos produzidos, mas pelo tempo que passavam trabalhando para ele. A mercadoria que os trabalhadores vendiam deixou de ser os objetos que produziam e passou a ser seu próprio trabalho.

Inicialmente, o tempo de trabalho não era medido em horas, mas em dias. O trabalhador recebia não pelas horas passadas na fábrica, mas pelo dia (o fato de hoje medirmos o tempo de trabalho em horas foi fruto de uma longa luta entre capital e trabalho, iniciada já nos primórdios da articulação dos movimentos operários e ainda hoje não encerrada). Para o capitalista isto significava que seu lucro podia ser ampliado por dois caminhos: 1) aumentando ao máximo possível as horas do dia de trabalho; e 2) aumentando a quantidade de produto extraído de cada hora trabalhada, através da evolução tecnológica.

Esta evolução tecnológica, entretanto, como aponta Edgar de Decca, não foi causa do sistema de fábricas, mas consequência. A forma mais eficaz, portanto, de ampliar os lucros, a partir do momento em que os trabalhadores não dispunham de outra fonte de renda senão o trabalho nas fábricas, foi estender ao máximo o dia de trabalho.

SURGE UMA NOVA MULHER

Como vimos há pouco, antes do sistema das fábricas o local de produção era o lar. O fato de o trabalhador deixar de trabalhar em casa para confinar-se em outro local, durante jornadas que duravam 14 horas, às vezes mais, provocou uma radical transformação na estrutura da família e nos papéis do homem e da mulher.

É sabido que o trabalho nas fábricas não se restringia apenas ao homem. Também as mulheres e até crianças eram aproveitadas. Mesmo assim, até como herança da divisão de tarefas e dos papéis anteriores do homem e da mulher, foi para ele que o fardo do trabalho na fábrica se tornou uma sina inevitável. Ele, na verdade, sem outra opção de obter seu sustento, passou a perseguir o trabalho na fábrica, arrastando com ele a família. Mais: transformando toda sua vida em função da necessidade de passar praticamente todo o tempo encerrado entre as quatro paredes da unidade de produção do capitalista.

Não estamos mais falando apenas do artesão. O desenvolvimento do mercado provocou mudanças profundas também no campo. A agricultura voltada à produção para o mercado causou a expulsão dos camponeses da terra. Também para eles, a única alternativa de sobrevivência passou a ser o trabalho nas fábricas ou a prestação de serviços nas cidades. Estas, assim, foram inchando, transformando-se em amontoados de gente, girando em torno e vivendo em função das fábricas.

O homem, assim, transformou-se numa peça do sistema de produção. Vivia confinado na fábrica e dela só saía para um curto período, que dividia entre o descanso e um superficial convívio com a família. Sobre a mulher, recaía toda a responsabilidade de manutenção do lar, como descreve Michelle Perrot:

“A dona de casa está investida de todos os tipos de função. Primeiramente, dar à luz e criar filhos que leva consigo e, a partir do momento em que sabem andar, acompanham-na por toda a parte. A mulher e seus filhos são figuras familiares profundamente reproduzidas pela iconografia da época... Segunda função: a manutenção da família, os “trabalhos domésticos”, expressão que tem um sentido muito amplo, incluindo a alimentação, o aquecimento, a conservação da casa e da roupa, o transporte de água, etc. Tudo isto representa idas e vindas, tempo, trabalho considerável. A sociedade do século XIX não poderia crescer e se reproduzir sem esse trabalho não-contabilizado, não-remunerado da dona de casa. Finalmente, ela se esforça em trazer à família, unidade econômica fundamental na vida popular, recursos monetários, marginais em períodos normais, às vezes com um destino especial (complemento para os pequenos gostos, diversões ou melhorias no alojamento...), vitais em caso de crise, que sempre acarreta um aumento da atividade feminina, já que é preciso compensar o salário periclitante do pai de família. Esse “salário de trocados” provém essencialmente de atividades no setor de serviços: faxina, lavagem de roupas, entregas (a entregadora de pão é um exemplo destas mulheres de recados, e as crianças são de preferência puxadores de carrinhos, outra forma importante de transporte das mercadorias); mas também o pequeno comércio das mulheres com bancas de vendedoras a domicílio de artigos variados; finalmente, cada vez mais – e é uma ruptura radical na utilização do espaço –, o trabalho a domicílio. Contra tudo e contra todos, a dona-de-casa tenta manter esse papel monetário que desempenhou na sociedade tradicional: trazer dinheiro para o lar”.

A casa, na verdade, era não muito mais do que um cubículo onde a família dormia , guardava seus pertences e se apertava para algumas refeições. A realidade da mulher do povo urbana, gerada pelo sistema capitalista no século XIX, era a rua. A sociedade rural tradicional fazia distinções claras sobre o papel dos sexos na sociedade, incluindo os espaços que homens e mulheres podiam freqüentar. A cidade gerada pelo capitalismo veio a confundir estas ordenações.

É claro que os esquemas da sociedade rural tradicional não são esquecidos. Na nova cidade, os proletários desejam preservar e reproduzir suas formas de vida tradicionais, mas elas já não existem como possibilidade concreta. Perrot observa, a propósito, que houve uma forte resistência da classe operária ao trabalho externo das mulheres casadas. Isto pode ter sido um fator determinante para reduzir o número de mulheres nas fábricas, mas trouxe, como contrapartida, a necessidade, para elas, de conquistar o espaço urbano, uma vez que o trabalho doméstico era impossível dentro de casa. Até para buscar água a mulher tinha que ganhar as ruas e conviver com o povo da cidade.

Criou-se, assim, um estranho paradoxo. O homem proletário perde integralmente sua independência e liberdade, transformando-se num confinado, obrigado a entregar a maior parte do seu tempo a um processo de produção que ele não controla mais. Sua mulher, no entanto, ganhas as ruas. É ilustrativa – e bela – a forma como Michelli Perrot mostra como esta liberdade vai se transformando paulatinamente num ativo papel, não só econômico, mas político para a mulher do povo:

“... Fluida, a dona-de-casa circula por tudo, instala-se em qualquer lugar, pára como quer. Esbraveja-se contra ela, que não sabe se desviar nem se afastar, que invade a calçada, principalmente em tempos de crise. Com efeito, um dos meios de conseguir recursos para as pessoas do povo é se fazer de camelô... O vinho de Brie e Suresnes corre à larga, bebe-se, ri-se, canta-se, embebeda-se, e a mulher, que em geral pára exatamente no grau de lucidez de que precisa para levar de volta o marido, não o força porém a deixar a mesa, a não ser quando o dinheiro já se esgotou completamente... Essa mistura dos sexos nos prazeres também se encontra em certos trabalhos, por exemplo nos canteiros de trabalhos públicos. Assim, depois da Revolução de 1830, o governo de Luís Felipe abre canteiros de terraplanagem para dar trabalho aos desempregados, as mulheres vão até lá, acompanhadas pelos filhos: elas manejam a pá e o enxadão... E quando o governo toma uma resolução dizendo que só os homens serão admitidos àquele trabalho, as mulheres não entendem. Elas vão se manifestar diante da Prefeitura, para perguntar por que não as admitem: no campo, elas usavam a pá, o enxadão. E então?”

A VOLTA AO LAR

A liberdade da mulher, porém, é vista pela classe dominante como uma ameaça política. O combate a esta ameaça, no entanto, é travestido como combate à degradação moral. A polícia combate a “vagabundagem”, os bufões, os músicos e os camelôs. É mais uma forma de pressionar os proletários, restringindo ainda mais suas alternativas ao trabalho confinado nas fábricas. Mas também é uma forma de fazer com que a mulher perca sua liberdade nos espaços urbanos. Nos bares e tavernas inglesas, no final do século XVIII e no início do século XIX, homens e mulheres conviviam. Bebiam, cantavam e preparavam manifestações políticas juntos. A ação das autoridades foi paulatinamente reduzindo a presença das mulheres nestes locais. A partir de 1840, o pub inglês se transforma num lugar exclusivamente masculino. Simultaneamente, vai se reduzindo a participação das mulheres na vida política.

O puritanismo é uma arma terrível contra a liberdade da mulher. A burguesia entende a política como uma atividade da qual devem ser excluídos os operários e as mulheres. Para os burgueses, trata-se de uma necessidade evidente: os operários devem ocupar-se de seu trabalho, confinando-se nas fábricas, e as mulheres, por sua vez, devem ficar confinadas ao lar (afinal, o lugar da mulher burguesa era mesmo o lar, onde servia como adorno, procriadora dos filhos necessários aos arranjos políticos e comerciais e, ainda como fiel – e cruel – administradora. Os homens proletários divergiam apenas parcialmente. Achavam que eles deviam ter espaço na vida política. Mas, embalados pelo puritanismo, pelos ciúmes, pela insegurança – sentimentos estimulados pelos mitos sobre a promiscuidade nos lavadouros, por exemplo – concordavam que a liberdade das mulheres devia ser contida.

A segregação é amparada “cientificamente” por novas teorias antropológicas que descrevem a mulher como “naturalmente” sedentária e conservadora, em contraponto ao homem que seria guerreiro, caçador, por natureza, o dono dos espaços externos, ou seja, das ruas. E quando as ruas perdem a mulher real, passam a ser ocupadas por sua imagem idealizada. Os espaços públicos se enchem de estátuas e pinturas que reproduzem o rosto e o corpo da mulher.

O REDESENHO DOS PAPÉIS MASCULINO E FEMININO

Nada disto, porém, ocorre de forma repentina. Como vimos, eram muito fortes as razões concretas que levaram as mulheres às ruas, a começar pelas acanhadas dimensões das casas proletárias. Sua ajuda era indispensável no sustento das famílias. Além disto, a própria estrutura da sociedade precisava delas. Quem poderia socorrer as mulheres burguesas na administração de suas enormes residências? Quem lavaria suas roupas, as camisas de seus maridos e os lençóis sempre necessariamente imaculadamente brancos? E, de parte dos operários, não havia como evitar que a mulher saísse às ruas, porque, confinados às fábricas, não tinham tempo para sair às compras.

A necessidade de resolver estas contradições transforma a paisagem urbana. O comércio sai das ruas e passa a acontecer em lugares fechados. Certo tipo de compra é reservado aos homens: a de vinhos, por exemplo, ou a de jornais. Esta última, aliás, é reveladora. O homem se informa através dos jornais, que são sérios e falam a verdade – quase sempre a verdade das classes dominantes, mas séria, porque impressa e institucionalizada. A mulher se informa através dos falatórios fúteis, fofocas e maledicências, nas feiras.

Desta forma, a sociedade capitalista consegue aproveitar a mulher e seu trabalho e, ao mesmo tempo, domesticar sua rebeldia. Até suas conversas, inicialmente entendias como séria ameaça à ordem instituída, degeneram em mera “tagarelice”. A mulher é reduzida aos espaços que pode frequentar sem ser confundida com as prostitutas: a igreja, onde reza e reforça sua crença de que só pode ser uma santa ou o próprio pecado; o hospital, onde conforta os doentes; o cemitério, onde chora o marido morto; o magazine, onde é seduzida por pequenos sonhos e prazeres; o mercado, onde compra pão e sabão; e a escola, onde leva os filhos.

Em todos estes lugares, ela encontra outras mulheres e tem liberdade para conversar, desde que sobre assuntos apropriados para mulheres. E o mais apropriado é falar mal daquelas que não se conformam, não se adaptam, não se deixam domesticar.


CONCLUSÃO: A VITÓRIA DE NAPOLEÃO III

É interessante observar, aliás, que outra característica comum a estes lugares é a preocupação com o asseio. Nos magazines, existe a obsessão pela exposição de artigos brancos. Nas igrejas, se fala na purificação das almas, usando-se frequentemente a metáfora da alma branca. Na escola, especialmente nas creches que começam a multiplicar-se a partir de 1850, a mulher não pode entrar e são imediatamente trocadas as roupas das crianças, sempre suspeitas de estarem sujas e serem portadoras de epidemias.

E voltamos, assim, aos lavadouros. Napoleão III tinha razão: vinte anos depois da derrota de seu projeto frente à necessidade de “tagarelar” das lavadeiras, o assunto volta a ser seriamente questionado, conforme registra Michelle Perrot:

“Por volta de 1880, alguns começarão a dizer que as mulheres perdem muito tempo em idas e vindas, e que poderiam utilizá-lo de outra forma. Barbaret calcula em 35 milhões de francos o custo anual da lavagem de roupa de casa em Paris, entre os quais ele atribui 7 milhões ao trabalho das donas-de-casa que “não contam seu tempo, mas que no entanto poderiam empregá-lo em outras coisas de modo mais frutífero”. Ele preconiza o desenvolvimento de uma verdadeira indústria de lavanderia, mecanizada, em grandes estabelecimentos com uma rigorosa divisão do trabalho. De fato é criada e, nesses estabelecimentos as máquinas são confiadas aos homens; as mulheres se ocupam da triagem e da manutenção: a bem dizer, não lavam mais. Quanto às donas-de-casa, daqui por diante são excluídas. Inúmeros cartões-postais mostram estas fábricas de lavagem que não têm mais nada a ver com os lavadouros tradicionais. Aí, as mulheres perderam toda a soberania”.

REFERÊNCIAS

DECCA, Edgar Salvadori de. O nascimento das fábricas. 10. reimp., 1996 São Paulo, SP: Brasiliense, 1996. [1]p. (Tudo é história51)

PERROT, Michelle. Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros. 4. ed. São Paulo, SP: Paz e Terra, 2006. 332 p.

HOBSBAWM, Eric John. A Era do capital: 1848-1875. 9. ed. São Paulo, SP: Paz e Terra, 2002. 459 p.

domingo, 17 de abril de 2011

Dia do Índio - 19 de ABRIL


Pouco para comemorar. Muito para respeitar.

Um quarto dos remédios da medicina ocidental vem das florestas. Destes, três quartos foram desenvolvidos a partir de informações dos povos indígenas.

Em 1500, quando os portugueses chegaram ao Brasil, havia 6 milhões de índios. Nos anos 50, a população indígena brasileira estava entre 68.000 e 100.000 habitantes. Em 1500, havia em torno de 1.300 línguas indígenas. Atualmente existem apenas 170. Cerca de 35% dos 210 povos com culturas diferentes têm menos de 200 pessoas.

Muitas tribos indígenas foram extintas, numa autêntica guerra que durou até a década de 70, quando grande estradas começaram a cortar as florestas onde vivem a maioria dos índios brasileiros. Foram ameaçados por epidemias, diarréia e estradas. Outro sério problema ainda hoje enfrentado é a invasão dos garimpeiros, que os índios chamam de “comedores de terra”, pela devastação que causam.

Hoje, porém, o número de índios no Brasil e na Amazônia aumenta rapidamente. A taxa de crescimento de sua população é de 3,5% ao ano. Supera a média nacional, que é de 1,3%. Em melhores condições de vida, alguns índios recuperam sua auto-estima, reintroduzem os antigos rituais e aprendem novas técnicas de pesca, caça e agricultura. Muitos voltaram para as florestas. Atualmente há cerca de 280.000 índios no Brasil. Contando os que vivem em centros urbanos, chegam a 300.000. No total, quase 12% do território nacional, pertence aos índios.


Manter a diversidade cultural dos índios é muito importante. Sua cultura é muito rica. Um quarto dos remédios da medicina ocidental vem das florestas. Destes, três quartos foram desenvolvidos a partir de informações dos povos indígenas. É que os índios brasileiros sobrevivem utilizando os recursos do ambiente natural. Na pesca, por exemplo, é comum o uso de substâncias vegetais que intoxicam e atordoam os peixes.

A terra é propriedade coletiva. As tarefas são divididas por idade e sexo. Em geral, cabe à mulher o cuidado com a casa, das crianças e das roças. O homem é responsável pela defesa, pela caça (individual ou coletiva), e pela coleta de alimentos na floresta. Os mais velhos - homens e mulheres – são muito respeitados pela experiência de vida. Os chefes, hereditários ou eleitos, conduzem as mudanças e guerras, mantém as tradições, determinam as atividades diárias e fazem contato com outros povos, inclusive os brancos. Costumam ser assessorados por um conselho que os auxilia nas decisões. O pajé é um curandeiro e conselheiro espiritual.


São comuns os ritos de passagem, ligados à gestação, ao nascimento, à iniciação na vida adulta, ao casamento, à morte e a outras situações. Poucos povos acreditam na existência de um ser superior (supremo). A maior parte acredita em heróis místicos, muitas vezes em dois gêmeos, responsáveis pela criação de animais, plantas e costumes. A arte está na vida cotidiana. A pintura, feita com tintas extraídas na natureza, é muito desenvolvida, tanto a corporal como na cerâmica e na cestaria. Junto à pintura, eles desenvolveram toda a beleza da arte plumária.

Lembrem que também são indígenas grandes civilizações americanas, como os Incas, Maias e Astecas. Em alguns países, os índios ainda são maioria. O presidente Evo Moralez, da Bolívia, é índio e foi eleito pela maioria indígena de seu país. Sinal dos tempos.