domingo, 3 de abril de 2011

Os Modernos Quilombos






Participando de um projeto social junto às escolas de samba de diferentes bairros de Novo Hamburgo, percebi que em todas elas existia um traço comum: cada entidade tinha como base em famílias agrupadas. Mais do que isto, cada família, além de buscar uma proximidade geográfica também tem ramificações muito amplas, que lembram o conceito de clã. As escolas de samba, portanto, se estruturam como um centro de reunião de clãs. Da Escola de Samba Império da São Jorge, por exemplo, atualmente participam duas grandes famílias, relacionadas, e que vivem muito próximas. Ao mesmo tempo, estas famílias tem extensões nos municípios de Taquara, Campo Bom, Sapucaia e São Leopoldo, que têm suas próprias Escolas de Samba nas respectivas cidades, mas participam da entidade hamburguense. Trata-se de uma organização bastante complexa, que merece ser estudada em outro momento. Por hora, vamos nos deter apenas no exame das organizações em seu nível local.

O que percebemos é que as Escolas de Samba, embora na superfície pareçam apenas entidades voltadas à realização de uma festa anual, na verdade são centros de convivência onde se reproduz uma cultura específica dos afro-brasileiros, com aspectos religiosos e de organização social, não somente de música e dança.

Interessa, a propósito, que a existência de um padrão cultural nas diferentes Escolas de Samba faz lembrar a observação do pesquisador Clóvis Moura, de que a criação de uma cultura específica dos negros, no Brasil, embora com raízes na África, é um fato específico do país, relacionado com a resistência à escravidão:

“A África era um mosaico de culturas e não aquele conglomerado de indivíduos igualados no nível de semi-animalidade como apregoavam os colonizadores... os negros ao chegarem ao Brasil traziam, quer individualmente, quer em grupo, hábitos e costumes diferentes. E essas diferenças se manifestavam dinamicamente, motivo pelo qual o colonizador fazia questão de não permitir exagerado número de negros da mesma nação próximos uns dos outros. Mas, se estas diferenças culturais demonstravam que eles não eram os selvagens que se divulgava, criavam, por outro lado, obstáculos à sua organização e unificação como escravos. A diferença mais importante neste sentido era a linguagem. Isso levou a que eles procurassem criar uma língua geral, capaz de fazê-los serem entendidos mutuamente. Esta estratégia do escravo africano permitiu a elaboração no processo do trabalho (empiricamente), de um código de linguagem abrangente e capaz de fazer com que os membros dos grupos étnicos os quais falavam línguas diferentes passassem a se entender na condição de escravos. Com a criação desse código de linguagem alternativo puderam dar maior abrangência ao universo organizacional, de lazer, de práticas religiosas e de comunicação geral". MOURA (1974, P. 178)

O que nos parece relevante é que a manutenção de um padrão cultural próprio, específico dos afro-brasileiros, faz sentido, ainda hoje, como forma de resistência ao racismo que continua açoitando nosso país.

Ao me aproximar da Escola de Samba Império da São Jorge, comecei a observar algumas semelhanças com a organização dos antigos quilombos. A base da escola é constituída de duas famílias amplas. Em torno da casa de uma matriarca - a avó - vive quase uma centena de filhos, netos, bisnetos, sobrinhos, etc., com suas respectivas famílias. As casas se agrupam em terrenos vizinhos. Em cada terreno existem de três a cinco pequenas casas. Em cada uma delas, em peças divididas quase sempre apenas por panos, moram de cinco a dez pessoas. Este padrão sobrevive apesar da modernização de outros hábitos, como a utilização de modernos aparelhos elétricos, com forte destaque para a televisão e equipamento de som. E é interessante observar que, embora cada família tenha seu próprio equipamento de som, é rotineiro o seu uso coletivo, pois quase sempre as refeições importantes são conjuntas, especialmente nos finais de semana, quando todos se reúnem para comer, beber e ouvir música.

Também se observa que a renda é muito dividida. O número das pessoas que trabalham - especialmente as mulheres - é pequeno, mas existe um forte compromisso de ajuda mútua. A matriarca é responsável por ajudar e articular a ajuda a todas as famílias. É importante observar, a propósito, que este é um traço que vem mudando. Segundo as matriarcas entrevistadas, há alguns anos, o número de pessoas que trabalhava era bem maior. Ainda se mantém a instituição da ajuda mútua, mas o sentimento de responsabilidade pessoal, especialmente por parte dos mais jovens, parece estar diminuindo.

Entrevistas

Entrevistamos três mulheres. Comecei com Delhíria Eva da Silva, 71 anos, moradora do bairro São Jorge há 47 anos, viúva há oito anos e mãe de cinco filhos. O terreno em que ela vive é herança do sogro, que morava na região junto com seus irmãos. Ela ainda trabalha, na casa da família Muller, a quem serve há 40 anos. A tradição da família era se reunir todos os fins de semana para promover festas, mas havia algumas mais importantes, como a festa de comunhão, que era extremamente valorizada, por ser da religião católica.

As casas eram feitas de madeira, com iluminação de candieiro, água de poço, colchões de palha, cobertas de pena e plantavam boa parte de sua alimentação. As mulheres e os homens trabalhavam fora, mas quem era responsável pelas despesas da alimentação, vestuário e remédios eram as mulheres. Na verdade, pouco se gastava com remédios e vestuário. As roupas usadas no dia-a-dia eram quase sempre doadas. Como remédio, usavam-se chás, de acordo com conhecimentos tradicionais.

As mulheres trabalhavam em locais distantes e se dirigiam a eles caminhando longas distâncias, cruzando mato e cursos de água, usando barcos. Compravam mantimentos nos bairros vizinhos, mas parte deles era levado até suas casas por vendedores. Era o caso da carne e do leite, por exemplo. A base da alimentação era o arroz, servido com couve e preparado com sebo animal. Recebiam pão dormido de uma senhora que o trazia para a comunidade e este era dividido entre todos os parentes e vizinhos. Preparavam doces com frutas e os dividiam entre si.

O dinheiro dos homens era destinado às festas e a despesas pessoais. Para as festas, eram convidados parentes e vizinhos, independente da cor. Os brancos que moravam perto participavam das festas e mantinham boas relações com as famílias negras. Em momentos de dificuldade, ajudavam-se mutuamente. A família participava da Escola de Samba Protegidos da Princesa Isabel e o marido cultivava o sonho de fundar uma Escola do bairro São Jorge. O neto Cleber Luís Moreira, 28 anos, atual presidente da Escola de Samba Império da São Jorge busca concretizar este sonho.

A segunda entrevistada foi Nair Rodrigues, que mora na mesma rua, também tem 71 anos e nasceu no próprio bairro São Jorge. É viúva há 34 anos, de Léo Rodrigues, que era jogador profissional de futebol. Com ele, fundou uma Escola de Samba no bairro São Jorge, que, no entanto, teve vida muito curta. Participou também da Escola de Samba Aí Vem os Marujos, da qual foi rainha.

Teve três filhos e adotou outros cinco. Todos moram, ainda, no mesmo terreno, que ela herdou de sua mãe. Ainda trabalha como doméstica, para a família Bohrer, que serve há 33 anos e com o dinheiro que ganha, somado a sua pensão, continua ajudando no sustento de filhos, netos e bisnetos. Ela confirma os relatos de Delhíria quanto às responsabilidades das mulheres na manutenção da família, enquanto os homens destinavam o dinheiro que recebiam para promover festas e para despesas pessoais. Diferente da amiga, no entanto, Nair segue a religião afro-brasileira desde criança até hoje. Um de seus orgulhos é que a Mãe de Santo da terreira que freqüenta, Mari Sandra, foi passista da Escola de Samba que fundou.

A terceira entrevistada é Maria do Carmo Cardoso, nascida há 67 anos no hoje município de Salvador do Sul e moradora do bairro Santo Afonso há 44 anos, em terreno que adquiriu junto com o marido, de quem é separada. Mãe de 12 filhos, dos quais cinco já falecidos. No terreno onde mora, vivem também um filho e dois netos. Os demais filhos e descendentes moram próximos, num raio de cerca de um quilômetro.

É Mãe de Santo, praticante da religião afro-brasileira, nos ritos Umbanda e Nação, desde os 13 anos de idade, e tem sua terreira ao lado de sua casa. Todos os filhos são adeptos da mesma religião e participam das atividades da terreira. Hoje aposentada, trabalhou durante muitos anos na comunidade evangélica do bairro. Dos seus sete filhos vivos, cinco estudaram na escola mantida por esta comunidade. Segundo ela, nunca precisou esconder sua crença religiosa do pastor Sebaldo, responsável pela igreja.

De sua história pessoal, lembra que perdeu a mãe aos 11 anos de idade e, neste momento, ela e seus irmãos foram abandonados pelo pai. Foram criados, por dois anos, pelos avós maternos e depois vieram para a região metropolitana para ganhar a vida. Apesar das dificuldades, sempre manteve relacionamento com seus irmãos. Todos ainda se visitam.

Maria participou da diretoria da Escola de Samba Império da São Jorge e também já criou uma Escola no seu bairro, que não conseguiu manter ativa. Procura conhecer as raízes da cultura negra brasileira e visitou as ruínas de um quilombo que ouviu ter existido ao longo da estrada Presidente Lucena, no bairro Primavera, onde encontrou pés de café e pilares de construções antigas. Tem uma concepção ritualística das Escolas de Samba, dizendo, por exemplo, que a ala dos capoeiras deve sempre vir “no pé” (logo atrás) da ala das baianas. Um de seus filhos, aliás, Davi Cardoso, é professor de capoeira, tem formação superior e é pesquisador da cultura afro-brasileira.

Referências

Os três depoimentos, apesar das nuances diferentes, têm muitos pontos importantes em comum. Antes de passarmos às nossas conclusões, será útil, verificar o que dizem pesquisadores da realidade dos afro-brasileiros, que ajudam a iluminar o significado de nossas observações. Do já citado Clóvis Moura, julgamos extremamente relevantes as seguintes informações:

“O sincretismo foi unilateral e tinha apenas uma direção. A Igreja Católica permitia e até estimulava que seus ícones e símbolos fossem incorporados pela cultura religiosa dos escravos, mas não permitia, na via contrária, que seus princípios teológicos fossem contaminados pela religião dos negros escravos. Havia uma estratégia de auto-justificação e dominação dos colonizadores, pretendendo que praticavam uma escravidão civilizadora através da religião católica. Do outro lado, os escravos respondiam aceitando o sincretismo como tática de preservação de sua identidade étnica... Durante a escravidão, no entanto, o negro transformou não apenas as suas religiões mas todos os padrões de suas culturas em uma cultura de resistência social. Esta cultura de resistência desempenhou... uma função de resguardo contra a cultura e estrutura de dominação social dos opressores... “Sempre a defesa do oprimido, do dominado, do discriminado é sociologicamente ambígua. Aquele que não pode atacar frontalmente, procura formas simbólicas ou alternativas para oferecer resistência a essas forças mais poderosas. Dessa forma, o sincretismo assim chamado não foi a incorporação do mundo religioso do negro à religião dominadora, mas, pelo contrário, uma forma sutil de camuflar internamente os seus deuses para preservá-los da imposição da igreja católica”. MOURA (1974, P. 180 e 181)

Mais adiante, na página 211 do mesmo livro, Moura observa que “sem possibilidades de o negro frequentar as entidades brancas, todas elas impermeáveis ou quase à sua presença, ele tinha de continuar a se organizar, num fenômeno que era apenas, em muitos aspectos, repetição do que já existia antes da Abolição, quando o negro escravo, para não ser extinto social e mesmo biologicamente, organizou-se de diversas formas – confrarias, cantos, entidades de auxílio mútuo para compra de alforria, quilombos, etc. – Mantendo, com isso, uma série de valores e patamares de defesa interligando-se positivamente”.

Outra referência que nos parece de grande importância é o brilhante estudo de Darcy Ribeiro sobre a formação do povo brasileiro, no livro “O povo brasileiro – A formação e o sentido do Brasil”. Uma de suas observações mais agudas refere-se à formação típíca das famílias pobres, especialmente negras, em que a mulher é o centro da família. Isto decorre, segundo ele, do fato de que o escravo, sendo mercadoria, não podia constituir família, mas tinha filhos. Estes, naturalmente, eram criados pelas mães. A figura do pai era quase sempre inexistente. O mesmo padrão foi imposto para as famílias das índias com quem os portugueses mantinham relações sexuais. Neste tipo de família, segundo Ribeiro, o homem nunca foi responsabilizado pelo sustento da casa, que ficava ao encargo das mulheres. Nestas famílias, no entanto, os homens tinham um compromisso com a defesa da família, o que incluía o relacionamento com outras comunidades.

Conclusão

A observação de Darcy Ribeiro sobre as famílias matricêntricas nos remete de imediato ao depoimento das três mulheres entrevistadas. As duas primeiras afirmaram taxativamente que era responsabilidade delas o sustento das famílias e, hoje, já viúvas, continuam sendo o centro de referência e fonte de sustento de toda a comunidade. A terceira entrevistada, desquitada, cumpre a mesma função de ser o referencial de todo o núcleo familiar. Sua história pessoal, abandonada pelo pai quando a mãe morreu e criada pelos avós maternos, é outro indício forte de que esta forma de organização familiar persiste ainda hoje. Não seria difícil colher mais exemplos. Especialmente nas comunidades negras, ainda hoje, o sustento da família, na maioria dos casos, é assumido pelas mulheres.

Aos homens, no entanto, cabe o relacionamento dos núcleos familiares com a sociedade. E, isto entendido, passa a fazer sentido o fato de que o dinheiro que ganhavam era destinado às festas, pois estes eventos eram – e são – a forma mais comum de relacionamento da comunidade negra, tanto entre famílias de origem afro-brasileira como no relacionamento com a sociedade branca. Ainda sabemos muito pouco sobre a organização familiar nos quilombos. No entanto, faz muito sentido imaginar que também neles a família era matricêntrica, uma vez que aos homens cabia o relacionamento com o mundo exterior. Neste caso, o relacionamento não era através de festas, mas de guerra. Evidentemente, não poderia caber aos homens, que deveriam estar sempre prontos para lutar – e morrer – a responsabilidade de prover as necessidades das famílias.

Chama atenção, voltando ao presente, o fato de que todas as escolas de samba da cidade se estruturam em torno de famílias, inclusive no seu comando. Protegidos da Princesa Isabel, Portela do Sul e Aí Vem os Marujos tem o mesmo núcleo familiar na direção há décadas. A Cruzeiro do Sul não é controlada por uma família apenas, mas, mesmo assim, por alguns grupos familiares. No caso em pauta, da Escola de Samba Império da São Jorge, também encontramos a organização em torno de núcleos familiares. É interessante, a propósito que, ao se considerar convidar alguma pessoa para integrar a escola, sempre se faz referência ao tamanho da família que a acompanha.

O que percebemos é que, confirmando o raciocínio de Clóvis Moura, as Escolas de Samba são muito mais do que entidades inocentemente voltadas à comemoração de meros quatro dias de folia, mas fachadas de organizações sociais bem mais complexas, através das quais as comunidades afro-brasileiras vem preservando não apenas a música e a dança, mas toda uma cultura diferenciada e específica, com aspectos religiosos e de organização familiar. Elas são a ponta de um iceberg. O que se vê de fora é apenas uma bonita manifestação de música e dança. Na avenida, entretanto, desfila um povo que preserva sua identidade, suas crenças e seus costumes através de séculos de opressão.

Aplicação em aula

O conteúdo desta pesquisa pode ser desenvolvido de várias formas na escola. Entendo que o início deve ser a realização de uma pesquisa no bairro, fazendo com que os alunos investiguem como se estruturam as famílias negras. O bairro Rondonia, onde se realiza a escola onde realizo o estágio, é ótimo campo para este trabalho, pois nele vive um grande número de crianças afro-descendentes.

Em seguida, a pesquisa deve buscar descobrir como viviam as famílias negras mais antigas da cidade. É interessante observar que existem várias famílias com tradição, até porque uma das Escolas de Samba locais, a Cruzeiro do Sul, é mais antiga que a própria emancipação do município.

Outro passo é investigar e discutir a importância do Carnaval, como uma das festas mais populares de Novo Hamburgo. Novamente, o bairro Rondônia se presta muito bem a esta atividade, pois é sede da Escola de Samba Protegidos da Princesa Isabel, a maior do município.

Finalmente, podemos realizar palestras sobre o racismo, aproveitando a semana da consciência negra. Isto deve ser feito junto com apresentações que ajudem a valorizar a cultura afro-brasileira, como capoeira, baterias de escola de samba, as danças específicas de mestre-sala e porta bandeira, porta estandarte, passistas, etc. Outro ponto importante é falar sobre a religião afro-brasileira, questão essencial pois muitos alunos adotam esta religião, mas escondem o fato por sentirem vergonha, como se esta fosse uma religião menor, o que é mais uma manifestação do preconceito contra os afro-brasileiros e sua cultura.

Bibliografia

MOURA, Clóvis. Dialética Radical do Brasil Negro - São Paulo; Editora Anita, 1994.

RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro – A formação e o sentido do Brasil – Companhia das Letras, 1998.

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