sábado, 16 de abril de 2011

O NEGRO GAÚCHO


INTRODUÇÃO

Em 5 outubro de 1824, o presidente da província do Rio Grande do Sul, José Feliciano Fernandes Pinheiro, Visconde de São Leopoldo, relatando fatos referentes ao estabelecimento dos primeiros imigrantes alemães em solo gaúcho, falou sobre o fechamento da Feitoria do Linho Cânhamo, empre-endimento que, segundo conta a historiografia tradicional, teve que ser fechado por ser impro-dutivo. Segundo o presidente da província, 321 escravos faziam parte do capital da Feitoria.

Isto nos provoca a uma curiosa comparação. No século XIX, época do fato relatado, a principal atividade econômica do Rio Grande do Sul, que fazia de Pelotas e de Rio Grande as mais ricas cidades gaúchas, era o charque. Eram consideradas muito grandes, segundo o texto “O Negro no Rio Grande do Sul”, de Oliveira Silveira, charqueadas que tivessem mais de 100 escravos, como as de Eugênia Ferreira da Conceição, com 179, ou a do Barão de Buthuy, com 142.

O que há de curioso nesta comparação? Ora, a Feitoria do Linho Cânhamo é apresentada, pela historiografia tradiconal, como um estabelecimento absolutamente decadente, praticamente em estado de abandono. Por isto, a área onde estava estabelecida teria sido destinada à experiência de colonização por imigrantes alemães. O empreendimento, segundo nos tem sido relatado, era tão improdutivo que se tornou impossível manter a feitoria.

A REAL IMPORTÂNCIA DA FEITORIA DO LINHO CÂNHAMO

A idéia que acompanha este raciocínio é de que o trabalho do negro era de qualidade inferior ao dos alemães que vieram ocupar esta área. A comparação com a realidade das charqueadas, no entanto, nos leva à hipótese de que a Feitoria do Linho Cânhamo era, na verdade, um estabelecimento de grande importância à época. As razões de sua extinção, portanto, não podem ser encontradas no simples abandono a que estaria relegada.

Eliege Moura Alves, no artigo “Uma presença invisível: escravos em terras alemãs (1850 – 1870)”, no livro “Diversidade e Políticas Afirmativas: diálogos e intercuros”, sugere a possibilidade de que a luta dos escravos por sua liberdade tenha sido a razão fundamental para o fechamento da Feitoria. Ela lembra, a propósito, que em 2 de agosto de 1822, os escravos locais enfrentaram e expulsaram soldados do governo que queriam prender alguns negros acusados de roubo. Também é curioso apontar que uma localidade, no bairro Lomba Grande, do município de Novo Hamburgo, tem o sugestivo nome de Quilombo. Observando que esta localidade é muito próxima do bairro leopoldense que hoje leva o nome de Feitoria, somos levados a perguntar se existe alguma relação entre estas denominações e fatos que a historiografia local ainda está por investigar mais a fundo.

Os documentos da época dão conta de que os 321 escravos da Feitoria do Linha Cânhamo foram mandados para o Rio de Janeiro, para servirem à corte. É estranho que se tenham investido recursos para enviar para tão longe trabalhadores improdutivos ou rebeldes ao ponto de enfrentarem o exército português apenas dois anos antes. Fica a hipótese de que um bom número de negros tenha ficado na região, possivelmente na localidade hoje chamada de Quilombo. A propósito, é interessante registrar que há um número significativo de famílias tradicionais de origem negra no bairro de Lomba Grande. De qualquer forma, esta é uma hipótese a ser investigada com maior cientificidade.

SUPERANDO A INVISIBILIDADE DO NEGRO GAÚCHO

O que queremos registrar é que a historiografia tradicional trata de fazer com que o negro seja invisível. Este fenômeno é forte na História do Rio Grande do Sul. Eliege Moura Alves cita várias autores gaúchos, como Jorge Salis Goulart, Arthur Ferreira Filho, Manoelito de Ornellas e Moisés Vellinho, como exemplo de historiadores que afirmam que o Rio Grande do Sul é produto quase que exclusivo do trabalho livre de imigrantes de origem européia.

Apenas nas décadas de 1930 e 40, Dante de Laytano, de forma isolada, elabora os primeiros estudos sobre a presença negra no Rio Grande do Sul, trazendo à luz documentos que comprovavam a importância do escravo negro na História gaúcha. Na década de 1950, Fernando Henrique Cardoso realiza outro interessante estudo sobre este tema. Seu livro "Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional - o negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul" é a primeira obra referencial sobre a presença escrava em nosso Estado. O golpe de 64 fez com que o interesse sobre o tema fosse contido. Apenas em 1976, surgem novos estudos voltados ao assunto, do major Cláudio Moreira Bento.

O já citado texto de Oliveira Silveira, resume com clareza a conseqüência do mito criado pela historiografia tradicional:

"Em outros Estados brasileiros é comum as pessoas pensarem que o Rio Grande do Sul não tem negros, só descendentes de portugueses, espanhóis ou alemães, italianos e outros imigrantes. Vamos escurecer esta questão. O negro é também um dos formadores do povo rio-grandense, assim como foi do país. Habitante do campo foi gaudério, nômade e viveu, também, à margem da sociedade escravista. Foi quilombola. É gaúcho, sim, com a marca de trabalhador rural a cavalo. O gaúcho negro sempre existiu e existe. Viveu e vive nas estâncias, em pequenas ou mini-propriedades rurais e aqui no sul."

Arrisco, aqui, um depoimento pessoal, pois nasci em Caçapava do Sul, segundo capital farroupilha, e sou negra. Nasci numa pequena propriedade rural, como indica o texto acima, e boa parte dos meus cinco irmãos homens trabalham ou trabalharam como peões em fazendas de criação de gado. Assim como eles, milhares de negros desta cidade, onde se estima que cerca de metade da população é constituída de afro-descendentes.

ESCRAVOS DOS IMIGRANTES

Se no Rio Grande do Sul se tentou ocultar a presença negra, mais forte foi esta tendência nas regiões colonizadas pelos imigrantes. O mito cultivado foi de que estes trouxeram um novo tipo de consciência e moralidade, que valorizava o trabalho e, portanto, teria aversão ao escravismo. Os dados levantados por Eliege Moura Alves, no entanto, não confirmam esta visão. Pelo contrário, mostram que, à medida em que enriqueceram, os imigrantes aceitaram o trabalho escravo como coisa natural.

Estudando inventários de 1850 a 1870, a autora verificou que a proporção de propriedades com escravos, de alemães, deixadas como herança subiu de 3,85% em 1850, para 6,19% em 1870. É um crescimento bastante significativo quando se julga que os imigrantes tinham aversão a este tipo de exploração do trabalho. Outra observação importante de Eliege Moura Alves é que, em 1869, com uma população total de 22.794 habitantes, 1.532 eram escravos. Ou seja, mais de seis por cento da população de São Leopoldo. E os pardos e pretos eram 2.300 indivíduos, o que corresponde a 10,09 por cento do total.

É possível que esta proporção tenha sido ainda maior, uma vez que a vinda dos imigrantes alemães teve como um de seus objetivos "a melhoria da raça" brasileira. Não era desejo das autoridades brasileiras, portanto, que os colonos reproduzissem a dependência do trabalho escravo que caracterizava o resto do país. Por esta razão, os imigrantes alemães chegaram a ser proibidos de terem escravos. Como vimos, esta determinação legal nunca foi cumprida. É bem possível, porém, que muitas vezes a posse de escravos fosse escamoteada, de forma a não aparecer nos documentos oficiais. É interessante verificar, entretanto, que o trabalho escravo chegou a ser considerado, senão como indispensável, como de grande valia pelos colonos, conforme atesta Eliege Moura Alves:

"Assim, percebemos que os escravos tiveram um papel importante no processo econômico e político da sociedade colonial de São Leopoldo. E mesmo anterior a esta, na Feitoria do Linho Cânhamo. Os próprios imigrantes, correspondendo-se com os seus parentes, como exemplifica Madalena Metzen, em 1826, comentavam que 'se vocês têm algum dinheiro para economizar e não têm inclinações a comer pão vindo de longe, vocês facilitariam muito nosso trabalho aqui comprando alguns negros, dos quais cada um custa 300 espécies, e ocupando-os com o trabalho, a principal tarefa aqui é derrubar as florestas para torná-las aproveitáveis à plantação.' "

O NEGRO, HOJE, NO VALE DO SINOS

Todas estas informações levantam uma série de questionamentos e hipóteses que merecem investigações mais profundas, que ajudem a revelar a real contribuição dos afro-descendentes para o desenvolvimento de nossa sociedade. Ficando, ainda, apenas no Vale do Sinos, se na década de 1870, os negros eram 10 por cento da população, esta proporção deve ser bem maior atualmente, como decorrência do processo migratório provocado pelo crescimento da indústria calçadista. Sabemos, por exemplo, que a Escola de Samba Aí Vem os Marujos, de Novo Hamburgo, tem este nome por ter sido fundada por negros vindos de Pelotas e Rio Grande. É que Pelotas era um importante centro de produção calçadista até metade do século passado. Com o crescimento desta indústria no Vale do Sinos, houve forte migração de profissionais do setor calçadista daquela região para cá. Como se pode ver, a contribuição dos afro-descendentes foi relevante até para a indústria do calçado, tida como criação exclusiva dos descendentes de alemães.

Outro dado interessante é a própria existência das Escolas de Samba em diversas cidades do Vale do Rio do Sinos. Em Novo Hamburgo, existem cinco destas entidades em atividade: Protegidos da Princesa Isabel; Cruzeiro do Sul; Portela do Sul, Império da São Jorge e a já citada Aí Vem os Marujos. Existem outras duas registradas junto à Associação das Entidades Carnavalescas de Novo Hamburgo, embora não ativas: uma no bairro Canudos e outra no bairro Liberdade. Na vizinha cidade de São Leopoldo, nove Escolas de Samba participaram do desfile de Carnaval de 2008. Apenas no bairro Feitoria - curiosamente no bairro Feitoria - existem três.

RESISTÊNCIA E LUTA PELA LIBERDADE

Questão relevante sobre a presença do afro-descendente na História do Rio Grande do Sul é a ausência de referências à luta pela liberdade. A imagem cultivada, quando se reconhece a existência do escravo, é o do negro submisso e conformado com sua sorte. É revelador que a mais popular referência ao escravo no Rio Grande do Sul seja a lenda do Negrinho do Pastoreio. O santo menino que se deixa martirizar por seu patrão é a imagem do negro que está exposta em afresco no Palácio Piratini e é o tema de uma das mais populares músicas gauchescas.

É de se perguntar porque se omitem os lanceiros negros, que lutaram na Revolução Farroupilha - e teriam sido traídos por Davi Canabarro e Lucas de Oliveira. Vejamos o que diz o texto de Oliveira Silveira sobre a luta do negro por sua liberdade no Rio Grande do Sul.

"A resistência negra em terras sul-riograndenses ocorria, por exemplo, através de fuga para o outro lado espanhol, para junto dos indígenas ou para qualquer refúgio possível. São muitos os anúncios de fuga nos jornais do século XIX. Havia também muitos assassinatos de "senhores", capatazes ou feitores. Os quilombos eram pequenos e reuniam em torno de 20 pessoas, no máximo, entre homens e mulheres. O quilombo do Negro Lucas durou vários anos na Ilha dos Marinheiros, no Rio Grande, e foi extinto em 1833. Dos quilombos gaúchos, destacou-se o de Manuel Padeiro. Localizado na Serra dos Tapes, na antiga São Francisco de Paula, atual cidade de Pelotas, surgiu na década de 30 do século XIX. A Ilha de Barba Negra, na Lagoa dos Patos, foi um lugar de quilombo. E há muitos lugares denominados Quilombo em território gaúcho. Nos últimos anos, a antropologia tem apresentado um outro conceito de quilombo. Não se considera apenas resquícios arqueológicos de ocupação de grupos isolados e homogêneos, somente constituídos a partir de movimentos de rebelados. E, sim, grupos que desenvolveram práticas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos num determinado lugar. Durante a revolução farroupilha, muitos escravos aproveitaram a intranqüilidade reinante, para tentar a sorte como fugitivos. O mesmo ocorreu no período da Guerra do Paraguai. Quando, outra vez, aproveitando-se da conjuntura favorável, os africanos e seus descendentes tentaram em maior número, através de fuga, livrar-se da escravidão.

REFERÊNCIAS

MOREIRA, Paulo Roberto Staudt. Justiçando o cativeiro. A cultura de resistência escrava. IN: PICOLLO, Helga Iracema Landgraf e PADOIN, Maria Medianeira. Império. Passo Fundo: Méritos, 2006. v. 2 (Coleção História Geral do Rio Grande do Sul) p. 215-230.

ALVES, Eliege Moura. Uma presença invisível: escravos em terras alemãs (1850 - 1870). IN: NUNES, Margarete Fagundes. Diversidade e políticas afirmativas: Diálogos e intercursos. - 2 ed. Novo Hamburgo - Feevale. 2006. p. 156 - 171.

MAESTRI FILHO, Mário. Quilombos e Quilombolas em Terras Gaúchas. Porto Alegre/Caxias do Sul. EST/UCS, 1979.

SILVERIA, Oliveira. O Negro no Rio Grande do Sul. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN. Porto Alegre. 2005.


CONSIDERAÇÕES SOBRE UM POSSÍVEL QUILOMBO FERRABRÁS

Em resposta ao comentário postado por Robinson, algumas considerações e o agradecimento por ter levantado esta importante questão:

É muito provável que o morro do Ferrabrás tenha abrigado algum Quilombo ou, pelo menos, tenha servido como rota de fuga ou, ainda, como paradeiro temporário para negros fugidos.

Em primeiro lugar, deve se considerar que era um local de acesso difícil, morro acima, em meio a vegetação fechada e, ao mesmo tempo, oferecia excelente visualização das áreas baixas localizadas ao sul, a leste e a oeste (justamente os locais de onde poderiam mais provavelmente vir expedições de caça aos fugidos). Não é por outro razão que o mesmo morro foi escolhido pelos rebeldes “muckers” quando tiveram que se refugiar das autoridades do Império.

Em segundo lugar, se deve lembrar que, nas áreas ao pé do morro, havia propriedades de descendentes de portugueses que tinham escravos. Parobé, alguns poucos quilômetros ao norte, por exemplo, teve origem na fazenda Souza Pires, onde havia boa quantidade de escravos.

Também é importante o fato de que, como vimos há pouco, a Feitoria do Linho Cânhamo ter sido o maior empreendimento escravista da província de São Pedro, até o final do século XVIII. A feitoria ficava ao sul do Ferrabrás, na outra margem do Rio dos Sinos. No entanto, o abastecimento de carne da Feitoria vinha da Estância Velha (esta a origem do nome da cidade) já na margem direita do rio e a oeste do Morro Ferrabrás. Também na Estância, havia boa quantidade de escravos.

Finalmente, é importante o fato de que esta Estância estava localizada à margem do caminho que era usado pelos bandeirantes para descerem ao sul, para caçar índios e gado. Sabe-se que os bandeirantes usavam escravos negros como carregadores. A estrada tem o mesmo trajeto daquela que, hoje com o nome de Presidente Lucena, cruza os municípios de Nova Petrópolis, Picada Café, Ivoti, Estância Velha, Novo Hamburgo e vai terminar em São Leopoldo.

Faz muito sentido supor que muitos escravos fugissem e procurassem o Morro como refúgio. Sabemos que os negros fugidos buscavam contato com aqueles que continuavam cativos, deixando informações em código para ensinar-lhes rotas de fuga, indicando locais onde ficavam escondidos mantimentos e utensílios, além de locais para se abrigarem.

Nossa historiografia, no entanto, é muito pobre em documentos para que possamos reconstituir a História dos povos oprimidos (inclusive a solidariedade entre índios, que também habitavam esta região) e negros. Fica tudo no terreno das suposições. Os indícios, no entanto, são muito fortes e nos autorizam a pensar seriamente nesta possibilidade.

2 comentários:

  1. Na localidade de Padre Eterno/Sapiranga existe um morro conhecido desde a metade do século 19 como "Morro do Ferrabrás (ou Ferrabraz)". Este nome - Ferrabras/Ferrabras - não é de origem alemã ou portuguesa, ao que saibamos. A única referência que encontramos desta pálavra é ser o nome de um "Exu natural, entidade de religião afrobrasileira. Pela antiguidade do nome, acreditamos que a elucidação da origem e do significado deste nome, já naqueles distantes idos, poderia talvez comprovar a existência de um quilombo ou reduto negro no local,se por acaso esta entidade religiosa (Exu Ferrabras) já constasse da religião dos negros da época. Aceitamos qualquer informação. rfc (robinson.fc@hotmail.com)

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  2. Acho interessante toda descendência do nosso povo brasileiro, assim também como fundamental a existência de todos nós seja qual for a sua origem ou cor.
    Somos branco, somos preto somos gente, não importa cor.

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