domingo, 3 de abril de 2011

Arte Afro-brasileira






Com forte influência sobre a arte moderna, a partir do momento em que Picasso buscou inspiração nela para pintar mais do que a reprodução de figuras, mas a tradução de sentimentos e estados de espírito, a arte africana é extremamente rica em significados. No entanto, para entendê-la, conforme José Neinstein, é preciso ter claro que ela é profundamente diferente da arte ocidental. Não é obra de um artista em particular, nem uma manifestação apenas estética. As obras da arte africana são sempre funcionais e tem razões imperativas de ser. Não se trata de arte pela arte, porém isto não diminui em nada a beleza das suas formas e o esmero requintado de seu acabamento. Elas são representações materiais das concepções espirituais e sociais de diversas etnias estabelecidas na região da África ao sul do Saara.

As peças foram realizadas com intenções e objetivos muito diversos. Elas podem ser a justificação e a glorificação de uma dinastia real, como entre os Ashanti e os Fon, da África Ocidental, entre os Luba e os Kuba, do Zaire. Podem representar a busca de proteção de membros da família falecidos recentemente, como é caso dos relicários executados pelos Fang e pelos Kota-Obamba, do Gabão. Podem ser a representação de noções cosmológicas sobre a criação do univero, em busca da manutenção do seu equilíbrio, como no caso dos Dogon. Podem contribuir para cultivar as relações protetoras de certas forças da natureza pela intermediação dos ancestrais longíquos, como ocorre entre os Nagô-Iorubás. Podem, enfim, tentar conciliar, em proveito próprio, as forças mágicas e as utilizar contra seus adversários, como fazem os Lobi, da Costa do Marfim e os Kongo.

As máscaras, neste contexto, segundo aponta Arlete Soares, tem um significado especial pois, para os povos africanos, a cabeça era o ponto mais nobre do corpo e através dela as pessoas se comunicavam com seus ancestrais. Os ornamentos que muitas vezes aparecem sobre as cabeças destas máscaras visam traduzir a herança ancestral de cada povo. O machado sobre a cabeça de Oxé de Xangô, por exemplo, simboliza que a justiça é objeto de culto de um povo ao longo de sua história. Outras vezes, porém, seu significado pode ser bem prosaico. A imaginação pode encontrar vários significados para a curiosa máscara Geledê encimada por formatos geométricos intrigantes e por uma serpente. Para os geledês, no entanto, elas tinham um significado e uma razão de existir muito prática: proteger seus donos dos atos maléficos de mulheres velhas, invejosas da felicidade dos outros.

É importante perceber também que esta arte tem uma vinculação permanente com o tempo. Às vezes, está voltada ao passado, buscando a representação dos ancestrais. Outras vezes, aponta para o futuro, ao representar repetidamente o fenômeno da fertilidade. No Congo, por exemplo, as estatuetas de madeira com figuras de mulheres tinham os seios muito grandes e elas sempre carregavam uma criança no colo, representando o poder feminino da fertilidade e a capacidade de criar novas gerações. O significado destas representações é que o tempo presente é apenas um dos momentos da vida real dos indivíduos e das sociedades, pois eles estão eternamente vinculados a quem os antecedeu e a quem os sucederá.

Trazida para o Brasil pelos escravos, esta arte negra adquire um novo significado. Vagner Gonçalves da Silva observa que ela reproduz a identidade cultural de um povo arrancado de sua terra e que precisou reiventar-se numa sociedade que lhe era inteiramente hostil. Esta identidade, os negros só podiam cultivar à sombra, muitas vezes valendo-se da astúcia e do sincretismo. Mesmo assim, nunca deixou de ser também um exercício permanente de resistência, fazendo com que a herança africana se reproduzisse com vigor e se afirmasse como base inegável da própria cultura do país.

Muitas vezes, esta identidade se oculta sob uma forma cristã. É o caso dos gêmeos Ibegis, orixás que representam o espírito infantil e se se transformaram nos santos gêmeos cristãos, Cosme e Damião. Da mesma forma, a voluptuosa Iemanjá, na tradição africana representada com seios generosos, muitas vezes ocultou-se na figura virginal de Nossa Senhora dos Navegantes. O orixá guerreiro, Ogum, adquiriu a forma do santo guerreiro cristão, São Jorge.

Nestes casos, tivemos uma “ocidentalização” dos significados africanos. Por outro lado, eles “africanizaram” a cultura ocidental. Ao mesmo tempo que ícones cristãos invadiram o campo representativo africano, aconteceu o movimento inverso. O artista africano transmitiu suas imagens e formas para a representação dos símbolos cristãos. Um exemplo claro é o Cruzeiro Monumental, produzido por artistas negros em Minas Gerais. Nesta obra, a cruz cristã, é ornada com inúmeros elementos da cultura religiosa africana. E nesta composição, mesmo os símbolos absolutamente cristãos ganham uma forma que acaba lembrando a cultura negra. O mesmo acontece, com a mesma força simbólica nas figuras de ex votos, extremamente populares nas igrejas do Nordeste, através das quais os fiéis agradecem por curas e graças alcançadas. Nelas, a influência africana é perfeitamente clara. Não se busca a reprodução perfeita das formas, mas a representação das partes do corpo que foram beneficiadas pelos milagres e graças alcançadas, como uma forma de agradecimento e também com a função prática de garantir a permanência dos benefícios.

Em alguns momentos, especialmente a partir da valorização da cultura negra no Brasil, esta arte recupera muito de sua integridade africana. A figura de Iemanjá, produzida na Bahia, como uma sereia de feições negras e seios fartos, mostra claramente a influência africana preservada. Neste caso também esta arte adquire uma significação especial. Além de todo seu valor religioso, ela representa também o reencontro do povo negro com suas raízes africanas, deixando de lado a figura de Nossa Senhora dos Navegantes.

Não se trata de uma atitude apenas “politicamente correta”, de conceder ao negro o direito a sua própria história e a sua própria cultura. Trata-se da própria identidade da nação brasileira, que nunca será plena se não for capaz de reconhecer-se na cultura africana. E isto, como na arte ancestral africana, não se limita apenas ao campo da estética. Tem relação com o reconhecimento dos nossos ancestrais e dos nossos descendentes.

BIBLIOGRAFIA

NEINSTEIN, José (diretor executivo do Brazilian-American Cultural Institute, em Washington). Conferência na Pinacoteca do Estado de SP. 19 de agosto de 1995.

SOARES, Arlete. África Negra. Editora Corrupio. Salvador, BA. 1988.

DA SILVA, Vagner Gonçalves. Museu afrobrasil – um conceito em perspectiva. Instituto Florestan Fernandes. SP. 2004.

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