quarta-feira, 20 de julho de 2011

A CULTURA DA ESCOLA E A CULTURA DO ALUNO

A auto-estima é reconhecida como fundamental para o aprendizado e para o desenvolvimento das crianças. No entanto, para estudantes de etnias discriminadas, a auto-estima é fortemente problematizada. Além da cor da pele e das características físicas, sua cultura, sua organização familiar, sua linguagem, suas predileções no campo da música e até da culinária, via de regra, são preconceituosamente rotuladas pela sociedade como “inferiores”, ou, no mínimo, com eufemismos como “incultas, populares, folclóricas”, etc. Desta forma, se constrói uma identidade sócio-cultural que contém uma profunda perversidade: a criança logo “aprende” que pertence a um grupo social específico, mas “inferior”. E esta “inferioridade” parece se confirmar quando a criança não consegue compreender a “linguagem cultural” da Escola, construída distante de sua realidade.

A Escola não pode desvincular-se totalmente de sua linguagem, até porque boa parte desta tem a função de transmitir novos conhecimentos, conteúdos e visões de mundo para os alunos. No entanto, pode assumir a postura generosa de acolher as culturas discriminadas, valorizando-as como importantes manifestações do espírito humano, como de fato o são e, desta forma, se aproximando das linguagens do aluno e – ela também –aprendendo.

A simples inclusão de programas que valorizem a cultura destas crianças tem efeito positivo imediato sobre sua auto-estima e cria um ambiente de aproximação entre as duas culturas que devem dialogar: a do aluno e a da Escola. Assim, a evolução de tais atividades favorece o desenvolvimento das crianças, não só nas artes específicas que estiverem sendo trabalhadas, mas também na sua capacidade de dialogar com a Escola e, portanto, de assimilar os conteúdos curriculares. Afinal, é diferente falar com quem claramente demonstra que te respeita ou com quem seguidamente informa que te considera inferior.

Frise-se, além disto, que tais atividades, por terem proximidade com a realidade cultural dos alunos, despertam entusiasmo, facilitam o desenvolvimento da motricidade, favorecem a concentração e proporcionam o auto-reconhecimento da capacidade de se desenvolverem, condições básicas para o melhor rendimento escolar de cada criança.

Por outro lado, o resgate das culturas discriminadas contribuirá também para que professoras(es) e funcionária(os) das escolas da rede municipal, mais do que aceitar, respeitem, compreendam e valorizem toda a riqueza de suas manifestações. Uma criança socialmente discriminada pode até ser tratada com carinho numa escola, mas este carinho pode vir acompanhado de uma visão que a trata como alguém a ser “salvo” de sua própria identidade, o que apenas reproduz e reforça um meio hostil ao desenvolvimento desta mesma criança. Sabemos que a postura preconceituosa não é necessariamente maldosa, mas socialmente condicionada. Os conceitos e preconceitos da(os) educadora(es), portanto, não podem ser vencidos apenas pelo discurso formal, embora este também seja necessário. Para que isto ocorra, é necessária a convivência com a riqueza das culturas discriminadas.

Desta forma, por garantir a presença do tema e sua inserção no cotidiano das escolas, como conceito e como prática, o desenvolvimento de atividades de caráter cultural que valorizem as culturas étnicas tem importante contribuição também para a inclusão da questão étnica no ensino curricular. Neste sentido, é necessário que as atividades extra-curriculares desenvolvidas sejam aproveitadas como geradoras de interesse pelos temas curriculares vinculados ao ensino da História da África, dos Afro-descendentes brasileiros e indígenas, no melhor espírito da Lei Federal 11.645.

Ainda outro benefício decorrerá da realização de oficinas voltadas às culturas das etnias discriminadas: a aproximação da Escola com as famílias destas crianças, porque podem, de diversas formas, participar de momentos importantes de sua realização, sentindo-se também elas valorizados pela Escola em razão de seus saberes específicos.

NEGROS E INDÍGENAS NO RIO GRANDE DO SUL E EM NOVO HAMBURGO

Cabe ressaltar a importância das etnias discriminadas na composição da nossa sociedade. Novo Hamburgo e o Vale do Rio dos Sinos são comumente identificadas como sociedades formadas majoritariamente por descendentes dos imigrantes alemães. Embora isto ainda seja verdade em algumas localidades menores, não é mais a realidade das cidades maiores, como Novo Hamburgo, São Leopoldo, Campo Bom e Sapiranga, onde a migração de mão-de-obra para a indústria calçadista, a partir da década de 1970, alterou substancialmente a composição étnica da população. Estudo desenvolvido pelo Projeto Quizomba da Cidadania, realizado nos municípios gaúchos de São Leopoldo e Novo Hamburgo com apoio da Fundação Cultural Palmares e do Ministério da Cultura indicou, em 2007, que a proporção dos negros na população de Novo Hamburgo está em torno de 15%. Assim, também em números absolutos estas ações terão grande importância. Dos mais de 26 mil alunos atendidos pelas 76 escolas da rede municipal, seguramente mais de 4 mil são afro-descendentes brasileiros.

Se o número já é expressivo, cabe frisar que ele tende a aumentar, uma vez que os índices de natalidade são mais elevados nas vilas periféricas, onde se concentra a população negra. Além disto, o desenvolvimento de ações específicas para a valorização da cultura dos afro-descendentes brasileiros é necessário também para refletir e integrar a Escola à realidade nacional, onde a proporção de negros é bem mais elevada.

Por outro lado, não temos nenhum indicador confiável da real proporção de indígenas e, especialmente, descendentes de indígenas em nossa população. Tampouco uma visão clara das heranças culturais que ainda estão presentes na vida da periferia de nossa sociedade. É um número difícil de medir porque a destruição da identidade indígena foi muito mais severa do que a dos negros, em nosso país e especificamente em nossa região. Mesmo assim, é importante o desenvolvimento de atividades que hajam no sentido da recuperação e valorização das culturas indígenas. Especialmente nas vilas periféricas, há um número considerável de famílias que se acreditam descendentes de indígenas, o que verificamos empiricamente em nosso cotidiano como educadores.

Além disto, no Brasil, é crescente o número de indígenas que assumem a defesa de sua identidade étnica. Em muitos países da América Latina, os índios começam a participar da vida política de forma determinante, como na Bolívia, Paraguai, Peru, Equador e México. O resgate de valores culturais indígenas, portanto, é importante, não apenas para a integração de um contingente populacional não mensurado, mas certamente superior ao que nossa ignorância permite alcançar. É também fundamental para a integração de nossa própria sociedade no contexto brasileiro e latino-americano.

Finalmente, devemos assinalar que também a cultura gaúcha pode e deve ser entendida como uma identidade étnica importante. O fato de não ser tão fortemente discriminada como as anteriores, por ser resultante de um processo de fusão cultural que inclui os brancos, não deveria ocultar o fato de que também ela é submetida a uma série de preconceitos. Por outro lado, justamente por ter esta composição diferenciada e ser menos intensamente discriminada, a cultura gaúcha pode abrir portas para o reconhecimento de valores dos negros e indígenas.

As artes culinárias, especialmente, oferecem um terreno extremamente fértil para desenvolver a compreensão da profunda integração da cultura gaúcha com os antepassados indígenas e negros de grande parte de nossa população. A partir deste exemplo, aliás, podemos perceber com clareza o alcance deste projeto. Demonstrando na prática a influência dos indígenas e negros na formação gaúcha, facilitamos a assimilação de informações relevantes sobre a própria História da região (**)

(**) Há registros históricos de que os primeiros imigrantes alemães devem sua sobrevivência ao contato com indígenas que os ensinaram a comer e cultivar plantas da terra. São fatos pouco conhecidos e omitidos na versão histórica local que super-valoriza os valores dos imigrantes enquanto ignora a importância dos outros povos. Esta “História” não considera adequadamente a importância da Feitoria do Linho Cânhamo na efetiva ocupação do Vale do Sinos, antecedendo a imigração alemã. A Feitoria foi o maior empreendimento escravista da então Província de São Pedro, contando com 321 escravos, enquanto nenhuma das maiores charqueadas da época ultrapassou o número de 200 escravos. Tampouco reflete sobre o fato de que parte considerável da mão-de-obra utilizada pela nascente indústria coureiro-calçadista, já na segunda metade do século XX, constituiu-se de operários negros oriundos de Pelotas e Rio Grande, profundos conhecedores das lides com o couro desde o tempo das charqueadas.

A RIQUEZA ETNO-CULTURAL COMO INSTRUMENTO DE INTEGRAÇÃO

É indispensável, ao cabo desta argumentação, observar que, por força do caráter universal que deve ter a Escola Pública, a oportunidade de conhecimento e desenvolvimento da cultura e das artes das etnias discrimiandas será oferecida a todos os alunos das escolas onde ela acontecer. Esta amplitude tem forte efeito positivo: crianças de outras etnias, além de desenvolverem carinho por estas manifestções culturais, podem encontrar espaços insuspeitados para o seu desenvolvimento. Por outro lado, para as crianças de culturas discriminadas, as possibilidades de satisfação pessoal, reconhecimento e estímulo geradas pela valorização de suas habilidades em artes que não lhe são estranhas, podem ser portas para o desenvolvimento em outros campos.

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