domingo, 26 de junho de 2011

UMA REFLEXÃO SOBRE A ÁFRICA


Tive a oportunidade, esta semana, de ouvir a palestra de Frank Chikane, pastor batista, que foi o chefe da Casa Civil do governo de Nelson Mandela na África do Sul. A essência de sua palestra foi a de afirmar que as políticas públicas são indispensáveis para superar o último resquício do racismo que, se deixado como está, reproduz a injustiça econômica e social indefinidamente. Fiquei admirarda com a clareza e a simplicidade com que ele desenvolveu este ponto de vista. E lembrei como, aqui no Brasil, ainda se contestam políticas como a das cotas na Universidade. Porém, o que mais me marcou foi sua descrição de Mandela, como o líder capaz de liderar o povo negro para vencer a luta contra o racismo institucionalizado em seu país, sem levá-lo a um banho de sangue e ódio.

O reconhecimento de Mandela como um líder extraordinário, capaz de uma autêntica façanha política, como a de unir um país dividido por décadas de opressão e ódio, me faz pensar em como temos uma visão preconceituosa da África. Com tantas guerras horrendas, em todo o mundo, fundamentadas nas diferenças étnicas e culturais, deveríamos perceber o quanto a África do Sul ensinou ao mundo.

A partir destas reflexões, lembrei de publicar o texto a seguir, de Kabengele Munanga e Nilma Lino Gomes – “Para Entender o Negro no Brasil de Hoje – História, Realidades, Problemas e Caminhos – Ed. Global, São Paulo, 2006. É de grande importância, para todos que lutam pela igualdade.

" Quais as imagens que temos em mente quando nos referimos ao continente africano? Como são os povos que lá vivem ou viveram? Como se organizam e quais as condições de vida das diversas sociedades africanas? Quais tecnologias desenvolveram? Quais as tradições que são mantidas e as que resistem?

Muito do que conhecemos da África chega até nós pelos meios de comunicação de massa. Filmes como os de Tarzan e outros popularizados no cinema e na TV trazem para nós imagens distorcidas do povo africano, de suas tradições e sabedoria. De modo geral, os personagens brancos são os que levam saberes, a religião e a cultura que deve prevalecer. Também ensinam os modos de organizar as sociedades, as formas de cultivar a terra, de preservar o meio ambiente e a saúde às pessoas negras que nada ou pouco sabem. Reportagens e documentários nos mostram pequenas parcelas da incrível diversidade cultural deste imenso continente ou apenas os aspectos curiosos destas culturas. Muitas das imagens e textos que chegam até nós reduzem todo legado histórico e de sabedoria produzido há milhares de anos por variados povos que lá habitam ou habitaram.

Até hoje, nas imagens que são veiculadas sobre a África, raramente são mostrados os vestígios de um palácio real, de um império, as imagens dos reis e muito menos as de uma cidade moderna africana construída pelo próprio ex-colonizador. Geralmente, mostram uma África dividida e reduzida, enfocando sempre os aspectos negativos, como atraso, guerras “tribais”, selva, fome, calamidades naturais, doenças endêmicas, Aids, etc.

No entanto, não faltam imagens e registros históricos capazes de mostrar uma África autêntica em sua múltipla realidade, que possam até criar um sentimento de solidariedade com os países africanos. Essas imagens de uma África autêntica pululam nos testemunhos dos viajantes árabes que se aventuraram na África ocidental entre os séculos IX e XI e dos navegadores portugueses que, no alvorecer da era das navegações do século XV, começaram a se aventurar mais ao sul do continente de forma sistemática.

Todos, árabes e europeus, descreveram em seus relatos a verdadeira África que viram. Muitos falaram com admiração das formas políticas africanas, altamente elaboradas e socialmente aperfeiçoadas, entre as queis se alternavam reinos, impérios, cidades-estados e outras formas políticas baseadas no parentesco, como chefias, clãs, linhagens, etc.

Até a véspera da era colonial moderna, era comum encontrar imagens positivas sobre a África. A natureza e as paisagens eram descritas com simpatia e lirismo; as mulheres eram consideradas bonitas e respondendo aos cânones da beleza da época, com boca em cereja e curva excitante. Escreveu o viajante alemão Barth, a respeito de uma cidade que ele viu na África ocidental:

“Taiwa foi a primeira grande cidade que eu vi num país propriamente negro. Ela me deixou com uma boa impressão, pois em toda parte apareciam signos evidentes da vida confortável e agradável em que viviam os nativos: a corte era cercada de grandes caniços que a protegiam dos olhares dos passantes...; perto da entrada, havia uma grande árvore sombreada e refrescante embaixo da qual recebiam-se os visitantes e tratava-se dos negócios correntes; toda a residência era protegida pelha folhagem das árvores e animada por tropas de crianças, cabritos, galinhas, pombos, um cavalo(...). O caráter dos próprios habitantes estava em completa harmonia com suas residências, tendo como traço essencial uma felicidade natural, uma preocupação para gozar da vida, amar as mulheres, a dança e os cantos, mas sem excesso... Beber álcool não passava por pecado num país onde o paganismo permanece a religião da maioria. Mesmo assim, era raro encontrar pessoas bêbadas: os não muçulmanos contentavam-se em beber um pouco de giya, espécie de cerveja de sorgo, para manter o coração feliz e gozar da vida” (Roland Oliver & Anthony Atmore, L’Afrique depuis 1800, Paris, Presses Universitaires de France, 1970, p. 36-37).

Uma outra testemulha ocular, o viajante e pesquisador alemão, Leo Frobenius, fala de outras cidades que viu em 1906, na África central:

“Quando entrei na região do Kassai e do Sankuru, encontrei ainda aldeias cujas ruas principais tinham quilômetros bordados com fileiras de palmeiras e cujas residências eram decoradas de maneira fascinante como se fossem obras de arte. Não vi homens que não carregavam no cinto suntuosas armas de ferro e cobre... Havia por toda parte tecidos de veludo e seda. Cada taça, cachimbo, cada colher eram uma obra de arte, totalmente dignos de comparação com as criações européias” (Roland Oliver & Anthony Atmore, L’Afrique depuis 1800, Paris, Presses Universitaires de France, 1970, p. 19).

Após a conferência de Berlim (1885) que definiu a partilha colonial da África entre os países europeus interessados em explorar política e economicamente esse continente, as imagens simpáticas e tranquilizadoras começaram a sombrear. A infância inocente foi substituída pela imagem de subumanos para justificar a invasão, a manutenção dos processos de colonização e a exploração econômica no continente e para facilitar a operação de sujeição."

Nenhum comentário:

Postar um comentário