sexta-feira, 14 de outubro de 2011

O NEGRO GAÚCHO, NA CLAREIRA DA MATA

Em Caçapava do Sul, cidade onde nasci e vivi por 16 anos, há um Centro de Tradições Gaúchas com o nome de CTG Clareira da Mata. É o CTG dos negros. Lá participei do grupo de danças, usei vestido de prenda e sonhei meus primeiros sonhos de menina adolescente. 
 
Pode soar estranho, hoje, falar em CTG dos negros. No entanto, há até bem pouco tempo, isto era normal. Em muitas cidades gaúchas – não só em Caçapava – os negros não entravam nos CTG’s dos brancos. Nem por isto, eram menos gaúchos ou amavam menos a cultura da nossa terra. Pelo contrário, eram – e são – tão apaixonados pela tradição gaúcha que criavam suas próprias entidades. 

Hoje, superados os tempos do racismo ostensivo graças à luta do povo negro e à evolução cultural de toda a sociedade, o CTG Clareira da Mata continua existindo e se afirmando como o CTG dos negros, mas, agora como herança histórica que merece ser cultivada; como patrimônio de um povo que soube lutar contra a opressão para buscar não a vingança, mas a harmonia.

Tenho muita certeza ao escrever estas palavras, porque sou testemunha destes fatos. Meu saudoso pai, “seu Sinhô” – personagem real do livro “Quatro Negros”, de Luís Augusto Fischer, foi um pioneiro da luta contra o racismo, e o fez como bom gaúcho. 

Desde quando eu era menina e vivia na Varzinha, no interior do Caçapava, a uns 30 quilômetros da cidade, nas terras onde meu pai e minha mãe criaram nove filhos, lembro dos bailes de ramada que meu pai promovia. Bailes de ramada eram festas que aconteciam num salão rústico, de chão batido, coberto de palha e iluminado por lampiões. Para animar a festa, meu pai chamava um bom gaiteiro, às vezes acompanhado por um bom tocador de violão. O povo vinha de longe, no lombo dos cavalos ou em carros de bois... Às vezes era uma verdadeira viagem, de até seis horas de ida e mais seis de volta. Por isto, os bailes tinham que durar a noite inteira. 

“Sequer um negro poderia pensar
em dançar com uma negra
num baile de brancos”

Também por isto, eram acontecimentos raros. Eram esperados com ansiedade e sempre muito concorridos. Além do povo que vinha de longe, é claro, aparecia toda a vizinhança. Inclusive os vizinhos brancos, que não resistiam à música e à animação da festa. Isto era comum. Também os negros se aproximavam das festas dos brancos. O costume, porém, era de que, nos bailes dos brancos, os negros ficavam de fora, apenas olhando a festa pela janela. Quando era promovido por negros, os brancos ficavam de fora.

Meu pai foi um dos pioneiros em acabar com estas barreiras. Nos bailes que ele promovia, os brancos eram convidados a entrar, mas negros e brancos dançarem no mesmo espaço já era “liberalismo” demais. No entanto, “seu Sinhô” sempre pedia, em determinados momentos, que os negros sentassem para deixar os “irmãos brancos” dançarem. 

E eles adoravam. Naquele tempo, como hoje, os negros tinham um balanço especial em suas músicas. Vale um parênteses aqui, para provocar uma reflexão sobre o quanto existe de negritude na música gaúcha, cheia de contratempos nas notas da gaita, que fazem a delícia de qualquer ouvido que goste de riqueza rítmica.

O significado destes fatos é muito mais profundo do que se percebe ao primeiro olhar. O fato de brancos se aproximarem de uma festa negra (e vice versa) revela a presença de uma integração cultural, construída sobre a arte gaúcha, e a possibilidade de relacionamentos de amizade entre pessoas de “raças” diferentes. Por outro lado, a regra de negros e brancos não dançarem no mesmo espaço tem uma carga simbólica terrível de separação e segregação raciais. Sequer um negro poderia pensar em dançar com uma negra num baile de brancos. Imagine como estava distante a possibilidade de dançar com uma branca, ou de dançarem um branco e uma negra. Lembre que, desde então, se passaram apenas três décadas. 

Nos CTG’s de raiz negra,
a relação mais importante
é a familiar.

Assim, para que os negros pudessem cantar e dançar, criaram seus próprios bailes e seus próprios CTG’s. É evidente que a cultura que se desenvolveu nestes centros tem suas características particulares, em muitos pontos diferente da cultura gaúcha dos brancos, mas se relacionando com ela, influenciando e sendo influenciada. Um relacionamento, ao mesmo tempo, de diálgo e conflito. 

Gostaria de frisar que as particularidades culturais do negro gaúcho não se encontram apenas nas artes – especialmente, no jeito de dançar, cheio de ginga e sensualidade, aproveitando toda a riqueza rítmica da música gaúcha. Também é muito particular, na comparação com a cultura gaúcha branca, a valorização da família. Nos CTG’s de raiz branca, a relação mais importante é a de poder. Pergunta-se quem é o patrão e a importância de cada pessoa se mede principalmente pela quantidade de cabeças de gado e pela extensão das terras que possui. Ou para quem trabalha. Nos CTG’s de raiz negra, a relação mais importante é a familiar. Pergunta-se de quem cada pessoa é filha, prima ou de quem é compadre ou comadre. 

O próprio nome do CTG onde aprendi a dançar, “Clareira da Mata” é um indicativo desta particularidade cultural do gaúcho negro. Ao invés de identificar uma propriedade privada – “estância, rancho, recanto” – se refere a um local coletivo e selvagem, um ponto de reunião de pessoas que vivem em contato íntimo com a natureza. Permite vislumbrar, ainda, a forte proximidade entre negros e índios em nossa raiz histórica, reforçando nossa tese, de que a miscigenção mais importante ocorrida em nossas terras foi a do negro com o índio, não a do branco com negros ou a do branco com os índios, como se costuma acreditar.

Sáo pontos que merecem mais atenção por parte de nossos pesquisadores históricos.

2 comentários:

  1. Com toda a sua importância,
    ser tocado é ainda menos importante do que ser capaz de tocar.
    Através do toque entramos em contato.

    Senti o Centro de Tradições Gaúchas (na emoção )do teu texto!

    perfeito!
    um abraço!

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  2. Teu blog é interessante, peço autorização para colocar um link para ele.

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